Um governo perdidinho da Silva – Parte 2: ladeira abaixo
- Marcos Junior
- 27 de fev.
- 9 min de leitura
Marcos Jr. [1]
No meu artigo [2] anterior em que abordo o estado de coisas do governo Lula, discorri um pouco sobre os fatores e as múltiplas frentes – na verdade, apenas algumas delas – que levaram o mandato do petista a um estado de purgatório astral, com a reprovação ao presidente ultrapassando a aprovação. Isso, por si só, seria motivo para acender a luz amarela no Planalto.
No entanto, o último levantamento [3] feito pelo Datafolha, entre os dias 10 e 11 de fevereiro, mostra que, na verdade o purgatório astral está mais para inferno: a parcela dos que avaliam o governo Lula como ótimo ou bom despencou 11 pontos percentuais, de 35% para 24%. Enquanto isso, os que avaliam seu mandato como ruim ou péssimo dispararam 7 pontos percentuais, de 34% para 41%.
Não se trata apenas de uma simples reversão de tendência, como ponderei em meu comentário [4] feito na última sexta-feira em meu perfil pessoal no Twitter, mas também – e sobretudo – de uma rápida deterioração na imagem de Lula 3 perante a população. E, quando se destrincha os dados da pesquisa, fica evidente que o mal-estar é generalizado: os mais pobres que ganham até 2 salários mínimos foram os que mais puxaram a aprovação para baixo – 15 pontos de queda, de 44% para 29%. Esse mal-estar também se estende aos próprios eleitores do atual mandatário [5]: se antes 66% deles avaliavam seu governo como ótimo ou bom, uma maioria confortável, agora essa avaliação não é sequer uma maioria simples: 46%, uma queda de 20 pontos percentuais.
Conforme falei antes, alguns dos fatores que levaram a essa implosão na imagem de Lula neste terceiro governo estão presentes tanto em meu artigo como na matéria principal sobre o último Datafolha: um deles, já recorrente, é incômodo com a crescente inflação, sobretudo a dos alimentos – cuja fala do próprio presidente “não comprar se está caro [6]” deu a impressão de pouco caso com a problemática. Para um presidente que se elegeu sob o mote “picanha e cerveja [7]” e agora se vê acossado por carnes – mesmo as de segunda – caras, café caro, e mesmo um simples ovo [8] caro (uma das alternativas mais em conta de proteína), o que podemos entender é que estamos diante de um gigantesco estelionato eleitoral.
Somado a isso, veio logo no início do ano a “querela do Pix [9]”, em que uma comunicação totalmente atrapalhada do governo no sentido de fiscalizar as movimentações financeiras de pessoas físicas e empresas, somada a uma onda de distorções feitas pela oposição, ajudaram a causar ainda mais dano à imagem do governo.
E isso porque estou falando apenas dos fatores mais recentes, fora outros que se acumularam ao longo do tempo e que já mencionei em meus artigos neste espaço. Para não dizer que não apresentei fato novo que apenas reforça o estado atual de perdição no governo, vamos a um, apresentado hoje na coluna de Lauro Jardim [10] n’O Globo: o clipping – a seleção de conteúdos noticiosos – que Lula recebe diariamente com os fatos mais relevantes, vem de sites e blogs de esquerda. Em suma: tal como Bolsonaro, Lula tem um “cercadinho” para chamar de seu, ainda que virtual. Não à toa que certas ações e discursos de governo estejam tão descoladas da realidade.
No campo da comunicação, não se pode negar que o governo, após dormir no ponto ao longo de dois anos, tentou se mexer com a entrada de Sidônio Martins no comando da SECOM. Contudo, como se pode notar no parágrafo anterior e em outro artigo [11], escrito em 13 de fevereiro na mesma coluna, querem emplacar uma campanha para tentar dar um “gás” na aprovação do presidente. Uma campanha de pendor “nacionalista”... Só que depois do Carnaval. Será que não se tocaram que não estamos mais no período entre 2003 e 2010, em que bastavam bons comerciais nas emissoras de TV e tutto bene?
A propósito, sobre o pretenso “nacionalismo” de Lula, bem como o patriotismo postiço de sua respectiva oposição, sigamos.
O boné da discórdia do governo e o patriotismo postiço da oposição
No início deste mês, que marca o retorno do Legislativo às suas atividades, ministros e demais lideranças do governo Lula resolveram usar um boné azul com os dizeres “o Brasil é dos brasileiros [12]”, uma clara contrafação [13] ao boné vermelho “Make America Great Again [14]”, usado pela campanha de Donald Trump, atual presidente dos EUA e por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro – simpatizantes de Trump – em manifestações.
A oposição, aproveitando o contexto da escalada de preços dos alimentos, reagiu poucos dias após [15], com integrantes usando um boné verde e amarelo com os dizeres “Comida barata novamente – Bolsonaro 2026”. Para quem não tem memória curta e tem caráter o bastante para não apostar nela em relação ao eleitor, é importante lembrar que “comida barata” em nenhum momento foi o forte do governo Bolsonaro: só no período entre 2020 e 2022 os custos da alimentação em domicílio subiram quase 45% [16].
A despeito dessa “guerra de bonés” evidenciar, por si só, o baixíssimo nível da política nacional, é importante tecer alguns comentários acerca disso, e o primeiro deles é que, ao menos em um primeiro momento, foi uma boa sacada dos governistas essa campanha de teor “nacionalista” (importante destacar as aspas) ao contrafazer um símbolo utilizado pelos trumpistas norte-americanos e apropriado pelos bolsonaristas em manifestações de apoio ao ex-presidente: afinal de contas, que raio de patriotismo – já que os bolsonaristas se dizem patriotas – é esse em que um dos principais símbolos utilizados é algo que diz “Fazer a América grande outra vez”?
Isso ficou evidente com a reação de Eduardo Bolsonaro, um dos principais nomes da oposição, denominando o boné de “anti-Trump [17]”, o que por si só mostra a subserviência do bolsonarismo a interesses alheios ao nacional, como se a única visão de mundo possível e razoável, sobretudo no campo da política externa, seria fazer do Brasil um puxadinho da política externa norte-americana. Até porque essa parceria entre trumpismo e bolsonarismo, quando Trump e Bolsonaro governaram em concomitância os EUA e Brasil, respectivamente, trouxe praticamente nenhum benefício ao nosso país – e digo isso por generosidade, haja vista que Trump naquele período implementou barreiras ao nosso aço [18].
Aliás, mais evidências desse “patriotismo postiço” da oposição, que mal chega a página dois, está nas declarações do próprio Bolsonaro, que, caso volte a governar, buscará, entre outras coisas, retirar o Brasil dos BRICS e permitir uma base militar dos EUA na tríplice fronteira brasileira [19].
O caso de retirar o Brasil, um dos “pais fundadores” do BRICS do grupo, para além de uma clara sabujice em relação aos interesses norte-americanos demonstra uma enorme falta de gratidão de Bolsonaro: sobretudo nos dois últimos anos de seu mandato, enquanto o Brasil estava praticamente isolado no Ocidente com o governo de Joe Biden e o acordo UE-Mercosul subia no telhado, a China ampliava seu posto de principal parceiro comercial [20], sobretudo em relação do agronegócio brasileiro (uma das bases de apoio a Bolsonaro), e isso a despeito de setores do governo adotarem uma retórica quase sinófoba, e a Rússia seguiu como um dos principais fornecedores de fertilizantes e, sobretudo a partir de 2022, de diesel [21] – haja vista que não conseguimos refinar todo o combustível que consumimos, e o ex-presidente limitou ainda mais essa possibilidade com a venda de refinarias da Petrobras.
Quanto à instalação de uma base militar norte-americana em solo brasileiro, isso ampliaria e muito as possibilidades de ingerência externa norte-americana nos assuntos internos do país – algo que ironicamente, os bolsonaristas têm criticado acerca da suposta interferência da USAID [22] (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) nas eleições de 2022, agência que está sendo quase que completamente “expurgada” no atual governo Trump. A solução para ingerência externa é... Ampliá-la? E, em um cenário em que essa base seja instalada, os democratas voltem ao poder nas próximas eleições e retomem a USAID com seu poderio anterior? Realmente vale a pena esse risco?
A propósito, já que a neodireita brasileira resolveu aprender a palavra “USAID” e repeti-la feito papagaios, é importante frisar que Bolsonaro, durante seu governo, firmou acordos com essa mesmíssima agência [23] para fins de criação de um fundo para acelerar investimentos no desenvolvimento econômico da Amazônia, quando Trump estava em seu primeiro mandato. A não ser que acreditemos que sob Trump a agência estava na mão de anjos e sob Biden de demônios, Bolsonaro expôs o país à maior interferência dos EUA. Resta saber se por miopia ideológica, burrice ou por, digamos, razões inconfessáveis (ou um pouco de cada).
Feita essa crítica um tanto longa às incoerências, hipocrisias e contradições da oposição, voltemos a falar do governo e de seus principais apoiadores, sobretudo na esquerda. Primeiro, é curioso que esta última tenha retomado o “nacionalismo” em sua retórica após mais de uma década de uma postura indiferente, quando não hostil, a qualquer tentativa de se exaltar o país e seus símbolos nacionais formais e/ou informais – lembro-me muito bem que na época das “jornadas de junho [24]” de 2013 e nos protestos anti-Dilma de 2014 a 2016, a simples ostentação de bandeiras nacionais ou o entoar do hino nacional era vista como algo “fascista” e o uso de camisas da Seleção Brasileira era visto como “hipócrita”, afinal, estavam “protestando contra a corrupção com a camisa da CBF” (como se as pessoas gritassem “CBF” e não “Brasil” nos jogos da amarelinha).
Como em política não existe vácuo, na total ausência da esquerda atual nesses pontos, a neodireita ocupou esse espaço [25] e, por muitos anos, assumiu praticamente um “monopólio” dessa postura patriótica – ainda que, como mostrei em diversos exemplos, esse patriotismo fosse bastante postiço, no sentido de que seus adeptos não necessariamente gostam do Brasil como ele se formou, mas sim gostariam que ele virasse uma cópia cuspida e escarrada dos EUA – mais precisamente dos estados da Flórida ou do Texas.
Sendo assim, não deixa de ser uma boa notícia que os canhotos, mesmo muito tardia e vagamente tenham voltado a dar alguma atenção à ideia de nação e seus símbolos representativos, formais ou não. No entanto, essa tentativa também não deixa de expor as incoerências e contradições deste mesmo campo. Isso começa pela própria escolha da cor do boné: o azul, uma das cores da bandeira nacional, mas também cor do partido Democrata dos EUA, em contraponto ao vermelho do partido Republicano. Pode ser uma mera coincidência, mas não tem como não reparar, sobretudo se considerarmos a profunda parceria entre Lula e Joe Biden [26], por exemplo, tanto antes das eleições presidenciais de 2022 como durante a transição governamental [27] e os dois anos em que ambos governaram juntos.
Como mencionei antes, esse pretenso “nacionalismo” petista também mal chega à página dois: o caso Ambipar, em que meio bilhão de reais em contratos [28] em atividades de “gestão ambiental” em uma área correspondente a 1/7 do território nacional [29], sem licitação, são celebrados com uma multinacional. Ou ainda a letargia do governo federal em prover uma solução para a Avibrás [30], empresa brasileira da área de defesa, que resguarde não só os direitos dos trabalhadores comprometidos em função da crise na empresa, mas também o interesse em manter o controle brasileiro sobre a organização, fundamental em um setor tão vital e estratégico como a área militar.
Em resumo: de um lado, um governo claramente perdido em suas próprias e contraditórias facetas, sem uma marca registrada forte até agora, envolto em polêmicas desnecessárias enquanto há problemas reais a se resolver; do outro, uma oposição “patriótica” que parece estar mais preocupada com o que acontece em Washington D.C. [31] do que em Brasília – ou em qualquer canto deste enorme país. Eis o atual estado de coisas e o “pacto de mediocridade” (ou nem isso) em que estamos firmados. Até a próxima.
[1] Formado em Engenharia de Produção, Especialista em Gestão Pública e servidor público.
[2] Disponível em: https://www.brasilgrande.org/post/um-governo-perdidinho-da-silva
[3] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2025/02/datafolha-aprovacao-de-lula-desaba-para-24-e-e-a-pior-de-todos-os-seus-mandatos.shtml
[4] Disponível em: https://x.com/marcosaljr/status/1890485005992026535
[5] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2025/02/datafolha-aprovacao-a-lula-cai-20-pontos-entre-seus-eleitores-veja-segmentos.shtml
[6] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/com-precos-em-alta-lula-pede-para-populacao-nao-comprar-alimentos-caros/
[7] Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/08/5032120-lula-no-jn-o-povo-tem-que-voltar-a-comer-churrasquinho-e-picanha.html
[8] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/02/preco-do-ovo-dispara-no-atacado-e-preocupa-supermercados.shtml
[9] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/01/receita-federal-nao-vai-cobrar-imposto-por-pix-acima-de-r-5000-mensais-entenda-novas-regras.shtml
[10] Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/lauro-jardim/post/2025/02/noticiario-que-lula-recebe-todas-as-manhas-e-extraido-de-sites-da-esquerda.ghtml
[11] Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/lauro-jardim/post/2025/02/campanha-nacionalista-do-governo-para-dar-um-gas-na-aprovacao-de-lula-comeca-depois-do-carnaval.ghtml
[12] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/basilia-rodrigues/politica/ministros-de-lula-usam-bone-com-recado-a-trump-no-congresso/
[13] Ato ou o efeito de contrafazer, de reproduzir um produto protegido por direitos de autor ou de propriedade industrial, sem autorização do seu autor ou titular do direito de propriedade registrada.
[14] Fazer a América “Norte – EUA” grande novamente.
[15] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/deputados-da-oposicao-e-governistas-tem-guerra-de-bones-tematicos/
[16] Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/miriam-leitao/post/2025/02/guerra-dos-bones-esquece-que-a-inflacao-de-alimentos-foi-alta-no-governo-bolsonaro.ghtml
[17] Disponível em: https://x.com/BolsonaroSP/status/1885798338177773656
[18] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/08/29/trump-dificulta-entrada-do-aco-brasileiro.htm
[19] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2025/02/bolsonaro-diz-que-vai-permitir-base-militar-dos-eua-na-triplice-fronteira-caso-volte-a-governar.shtml
[20] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/cresce-a-dependencia-do-brasil-para-a-china/
[21] Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/radar/governo-bolsonaro-anuncia-chegada-de-diesel-russo-ao-brasil
[22] Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/424844/advogado-alerta-para-possivel-influencia-politica-da-usaid-no-brasil
[23] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2025/02/07/governo-bolsonaro-assinou-acordo-com-agencia-que-trump-chama-de-corrupta.htm
[24] Disponível em: https://www.brasilgrande.org/post/jornadas-de-junho-10-anos-depois-qual-o-saldo
[25] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/12/opinion/1560348817_282472.html
[26] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2022/10/31/biden-parabeniza-lula-pela-vitoria-e-espera-aumentar-cooperacao-dos-eua-com-o-brasil.htm
[27] Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/governo-biden-agiu-para-impedir-um-golpe-no-brasil-em-2022-diz-jornal-britanico/
[28] Disponível em: https://www.metropoles.com/colunas/dinheiro-e-negocios/ambipar-fecha-meio-bilhao-de-reais-em-5-contratos-com-o-governo
[29] Disponível em: https://exame.com/esg/ambipar-e-ministerio-dos-povos-indigenas-firmam-acordo-para-emergencias-climaticas/
[30] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/investimentos/consorcio-propoe-investir-us-500-milhoes-e-assumir-avibras/
[31] Capital dos Estados Unidos da América
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