As facções brasileiras são terroristas?
- Rodrigo Campbell

- há 3 dias
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Por Rodrigo Campbell [1]
Introdução
Este artigo é uma proposta de leitura da realidade criminal brasileira, tão discutida nos últimos tempos devido à intensificação da expansão das facções nacionais. O objetivo é contribuir um pouco com o debate ao trazer algumas noções para auxiliar na compreensão do que ocorre no Brasil.
Muito se tem investido na tachação [2] das facções como organizações terroristas, mas muito se tem divergido sobre o que é o terrorismo e como ele se manifesta, o que leva ao desencontro das ideias, discursos e propostas. Faz-se necessário, então, esclarecer o que é o terrorismo no debate sobre a correta denominação para as facções para, então, o debate sobre como combatê-las começar.
Terrorismo não é enfrentado da mesma forma que ganguismo [3]. As leis, as estratégias e os meios usados para combatê-los devem ser diferentes, não apenas por serem crimes distintos, mas porque eles surgem, fundamentam-se e garantem a própria continuidade de formas distintas e têm objetivos distintos. A classificação correta é necessária também porque o alvo do Estado é diferente: enquanto no ganguismo o alvo do Estado é aquele que opera nas ações imediatas do grupo, no terrorismo, seus elementos atuantes são mais diversos, dividindo-se em intelectuais da atividade, combatentes, líderes, entre outros.
Então, este artigo procura ousadamente oferecer uma direção para o debate sobre a melhor forma de classificar as facções. Espera-se que, ao fim do artigo, os leitores sejam capazes de compreender o tema do terrorismo com substância e possam analisar a atuação das facções com segurança de conhecimento.
O que é terrorismo?
Para entender o significado de terrorismo, é necessário, primeiro, fazer uma análise semântica da palavra em si para, então, conseguir compreender a razão de seu uso e o seu uso histórico [4]. O substantivo terrorismo pode ser dividido em duas partes: no radical terror e no sufixo ismo.
Terror é um substantivo proveniente da palavra latina terrore. O seu significado não varia consideravelmente entre as dezenas de dicionários usados para consulta, o que permite exemplificar sua definição a partir de três dicionários bem-conceituados. No Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, de Francisco da Silveira Bueno, terror é definido como “Grande medo; pavor; qualidade de terrível”. O Moderno Dicionário da Língua Portuguesa define terror como “1. Qualidade de terrível; 2. Grave perturbação trazida por perigo imediato, real ou não; medo, pavor; 7. Regime político de arbitrariedades, perseguições e supressão das liberdades individuais.” O dicionário Mini Aurélio define terror como “1. Estado de grande pavor. 2. pavor”. Entre as definições apresentadas, a única que se destaca é a sétima do Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Tal definição se deve ao uso da palavra "terror" para caracterizar o regime de repressão jacobino, ocorrido durante a Revolução Francesa.
O sufixo ismo, amplamente usado na língua portuguesa, proveniente do grego ismós, segundo o Dicionário Didático de Língua Portuguesa, é um ”1. sufixo que indica sistema ou doutrina: comunismo, anarquismo. 2. Sufixo que indica movimento literário: modernismo, romantismo. 3. Sufixo que indica esporte: ciclismo, atletismo. 4. Sufixo que indica estado patológico: alcoolismo.” Já o Moderno Dicionário da Língua Portuguesa explica o sufismo de forma similar: “Forma substantivos que denotam sistema, conformação, imitação: cristianismo, neologismo, arcaísmo, indiferentismo.” E o Dicionário de Silveira Bueno explica-o no sentido de “Designativo de crença, escola, sistema, conformação, origem: ateísmo, (...) positivismo, (...) helenismo.”
Em sua pesquisa sobre os usos do ismo, Ana Vieira Barbosa identifica doze usos do sufixo ismo para formação de substantivos, entre eles: nome de prática, nome de práxis e nome de fenômeno. Para Barbosa, os nomes de práticas estão relacionados à dimensão acional, isto é, à realização prática, pois “os nomes de prática pressupõem a realização continuada de determinada ação, denominando ‘um hábito, um uso, um costume, uma atividade ou o estudo sobre determinado assunto, uma vez que todos partilham precisamente a ideia de realização ou prática regular de determinada ação'”.
Um nome de prática usado pela autora é “canibalismo”, sendo o consumo recorrente de carne humana. Também poderíamos acrescentar o bruxismo, que é o ranger excessivo dos dentes, ou banditismo, que é o comportamento de uma pessoa envolvida com a criminalidade. Ao considerar as definições de ismo oferecidas pelo Dicionário Didático de Língua Portuguesa, percebe-se que elas são consoantes à ideia de nome de prática, pois só pode haver um movimento literário, ou esporte, ou doutrina, se houver um exercício, uma realização, continuada destes.
A partir dessas definições, o terrorismo, em uma análise puramente denotativa, pode ser definido como “uma provocação metódica do medo”. “Provocação”, pois ele não é uma casualidade, mas algo premeditado e que se expressa materialmente; “metódica”, pois, por ser um nome de prática, é necessário que haja alguma forma específica de realização, um modo de fazer, que leve à sua efetivação, o que exige aperfeiçoamento e especialização; “do medo”, por ter como objetivo amedrontar, causar um impacto sentimental negativo. Dessa forma, o terrorismo tem como práxis a estimulação do medo e como objetivo, o efeito do medo (no contexto), pois a provocação exige a expectativa de uma reação.
Entre os dicionários, o terrorismo recebe muitas definições ligadas à história, relacionando-o a governos, à Revolução Francesa, às revoluções de forma geral ou mesmo a grupos, mas entre as terceiras ou quartas opções de definição pode-se encontrar explicações mais generalizadas. O dicionário Aurélio supracitado define o terrorismo como “modo de coagir, combater ou ameaçar pelo uso sistemático do terror”. Já o Moderno Dicionário, também já citado, tem como segunda opção de definição “Ato de violência cometido contra um indivíduo ou uma comunidade”. Notase que a aplicação arbitrária é o elemento fundamental. Um acidente não poderia ser considerado um ato de terrorismo, ainda que ele cause medo, pois ele é uma eventualidade desprovida de propósito, assim como esbarrar em uma pessoa não pode ser considerado um ato de violência.
Com base em tudo que foi exposto até aqui, pode-se dizer que o terrorismo tem três elementos fundamentais:
a) O medo
b) A arbitrariedade
c) Um alvo público
O ponto C é de suma importância, pois uma violência autoaplicada que se encerra na própria pessoa, principalmente quando feita privativamente, não pode ser considerada um ato terrorista. Um suicídio, ainda que realizado em um ambiente público, que não injuria nenhuma outra pessoa, não passa de um suicídio, pois os efeitos do ato só são sentidos pelo seu protagonista e não têm significado para a sociedade. Porém um suicídio cometido publicamente de modo que fira ou mesmo mate outras pessoas, como o caso do homem-bomba, é dotado de significado e gera efeito na coletividade. Um suicídio com tamanha capacidade de destruição só pode ter razão de ser se for para atingir as pessoas.
Da mesma forma, o homicídio: um assassinato, ainda que seja uma chacina, cometido fora do alcance público não pode ser considerado um ato de terrorismo, pois os seus efeitos se encerram nos mortos e não têm um significado coletivo para além do que diz respeito ao crime em si, mas uma chacina cometida em um local público, principalmente em um local dotado de afetividade social como um parque ou um shopping, gera um impacto negativo na coletividade e é pleno de significado.
Ao considerar o terrorismo em sua manifestação na história, a palavra ganha mais contornos, é substanciada com a informação, pois, agora, ela tem que explicar uma realidade e não apenas uma conjectura. O que demandava significação ganha, na história, sentido — sentido prático. É necessário passar, agora, do significado denotativo para a acepção, para o significado conotativo.
Em “Inside Terrorism”, obra referencial no assunto, Bruce Hoffman explica o que caracteriza um ato como terrorista: “Para ser qualificado como terrorismo, a violência deve ser realizada por alguma organização com, ao menos, alguma estrutura conspiratória e uma cadeia de comando identificável para além de um indivíduo agindo por si mesmo”. [5] Aqui, apresentam-se dois elementos importantes: ideologia e estrutura organizativa. Uma ideologia (estrutura conspiratória) pode ser considerada como uma crença sobre o mundo ou uma realidade específica que pretende causar algum efeito nestes, não sendo necessariamente uma doutrina.
A segunda característica do terrorismo é a sua vinculação à ação grupal. Há episódios na história em que, analisados estritamente, indivíduos agiram sozinhos, mas, a partir de investigações profundas, constatou-se que houve alguma influência maior sobre o autor para além da sua própria índole, como conexão virtual com um grupo nacionalista branco ou radical islâmico [6]. Em todo ato terrorista há alguma cadeia de influência.
Ao explicar a diferença entre um criminoso comum e um terrorista, Hoffman acrescenta: “(...)Enquanto que o objetivo do terrorista é inevitavelmente político (mudar ou alterar fundamentalmente um sistema político por meio de seu ato terrorista), o objetivo de um assassino ensandecido é frequentemente mais intrinsecamente idiossincrático, completamente egocêntrico e profundamente pessoal.”[7]
Toda opinião e ação sobre a sociedade têm uma potencialidade política devido ao seu caráter coletivo, mas não necessariamente doutrinária. Visto que o ser humano é um animal político e tudo o que concerne à organização ou funcionamento da sociedade é organizado na política — ou melhor dizendo: política é organização— , qualquer ideia ou ato de efeito coletivo pode ser considerado dentro da esfera do político. O ato criminoso comum, ao contrário, tem uma motivação estritamente pessoal e egoísta, desprovido de sentido maior coletivo, pois ele objetiva a satisfação solitária do autor. A ação terrorista pretende afetar a sociedade, enquanto o crime comum pretende afetar o seu autor.
Um exemplo de crime comum, egoísta, mas célebre, que poderia ser confundido com um ato terrorista, é dado por Bruce Hoffman em “Inside Terrorism”: “(...)John Hinckley, que tentou matar o presidente Ronald Reagan em 1981 para impressionar a atriz Jodie Foster, é um caso relevante. Ele não agiu por motivos políticos ou convicção ideológica, mas para satisfazer uma questão pessoal (matar o presidente para impressionar a sua musa da TV).”[8] Aqui, pode haver alguma confusão quanto à publicidade do ato de Hinckley. Acima, foi explicado que um ato terrorista precisa ter um alvo público e que um ato privado não tem tal caráter.
Bom, a tentativa de assassinato de Reagan não seria um atentado terrorista? Não, pois não tinha um objetivo também público: não procurou causar medo na sociedade, mas impressionar positivamente uma mulher, e a sua arbitrariedade é questionável, pois a sanidade mental do autor não foi assegurada no processo [9]. Ainda que o alvo tenha sido alguém muito conhecido, o que preenche um terço do critério terrorista, a sua motivação foi estritamente egoísta e não procurou amedrontar a sociedade, mas encantar uma atriz, o que esvaziou o ato.
Para diferenciar, ainda, o terrorista do criminoso comum, a explicação de Konrad Kellen, em seu livro “On terrorists and terrorism”, parece satisfatória. Ele afirma que ”(...) um terrorista é uma pessoa que, primeiramente, comete atos violentos com o objetivo de aterrorizar, de amedrontar. (...)”.[10] Comparando com um teatro, ele complementa: “(...) No palco, ele atua para uma audiência que está para além dos holofotes (...)”[11]. O terrorista procura alcançar outras pessoas com o seu ato, ele procura impactar. O seu alvo não é a vítima direta dos seus atos, mas aqueles que serão atingidos pelas imagens, pelas notícias. “(...) O terrorista procura causar terror para fazer com que as pessoas façam, ou desistam de fazer, certas coisas. O terrorista age dessa forma porque seus objetivos são, de forma geral, políticos (...).”[12]
A lei 13.260/2016 define o terrorismo como “prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”, reforçando, dentro do contexto deste artigo, o caráter social da prática terrorista.
Até aqui, pode-se notar o elemento da política como um fator importante. Acima, a política foi abordada de forma mais ampla e geral, o que é importante para considerar o tema da disputa social, pois nem toda política é partidária ou mesmo doutrinária. A Drª Maria Sousa Galita alerta que o método do terror pode ser usado como modus operandi por grupos que desejam causar uma revolta generalizada contra um alvo odiado, o que amplia a possibilidade de manifestação do terrorismo, já que a alteração da política (stricto sensu) pode não ser o objetivo em si. Nessa perspectiva, as motivações da ação terrorista podem ser religiosas ou mesmo culturais. Aqui, entram em cena o terrorismo racial e o terrorismo religioso, representados, respectivamente, pelas organizações The Order e o Boko Haram, a título de exemplo.
Porém, o terrorismo sem motivações primeiramente políticas não consegue evitar a política, por mais que ele tente, pois ele precisa alterar a política para alcançar os seus objetivos. Tanto o extermínio étnico quanto a implantação forçada da Sharia necessitam do Estado ao seu lado para serem realizados, pois eles levariam a uma transformação radical da sociedade que não poderia ser produzida nem mesmo se amplas parcelas (ou mesmo a maioria) da sociedade a demandassem, pois a vontade popular está submetida à constituição, às leis e aos desígnios de sua classe política.
Há um outro elemento importante do terrorismo que não foi tratado diretamente pelos pesquisadores citados até aqui, que é o status social do alvo: costumeiramente, os alvos do terrorismo são civis. O Departamento de Estado dos Estados Unidos da América, em seu documento “Patterns of Global Terrorism: 1989”, considera que o terrorismo é uma violência premeditada contra alvos não-combatentes, isto é, aqueles que não estão em campo de batalha, não têm status militar e são, a princípio, indefesos. Exemplos disto são os ataques terroristas ocorridos na França em 2015, o atentado de 11 de setembro [13] e o atentado terrorista na Somália, ocorrido em 2024 [14].
O terrorismo trabalha com a psicologia de massa. Ele não se manifesta em conflitos entre grupos ou entre um grupo e uma força armada, isto é, ele não é uma ferramenta de campo de batalha. Um Estado, por exemplo, representado pela sua força armada, pode se utilizar de práticas de terror, em meio a um conflito, para mobilizar a opinião pública — do seu território ou do território do inimigo — contra o inimigo, porém nunca contra os combatentes, pois é impossível o terror se manifestar em campo de batalha. O medo é um efeito, uma manifestação conjuntural, e não um fato, ele é uma consequência da ação sobre um tipo de alvo.
O ato se torna terrorista a depender do alvo: um grupo de soldados não é afetado por uma explosão da mesma forma que civis. A afetação é chave central: uma explosão ou várias mortes ocorridas ao mesmo tempo em um campo de batalha é apenas parte do confronto, mas uma explosão ou múltiplos homicídios em um espaço de convivência civil é uma anomalia.
Algumas novas características do terrorismo poderiam ser acrescentadas aos pontos anteriormente apresentados. Pode-se dizer que o terrorismo é:
a) socialmente motivado
b) um meio para um fim
c) dotado de significado
O terrorismo é “socialmente motivado” porque as suas razões, políticas, religiosas, culturais ou raciais, originam-se em um contexto social e se voltam para a sociedade, pois o terrorista não objetiva satisfazer a si mesmo (como tratado anteriormente), mas a realizar algo maior do que si mesmo, que deve se manifestar na sociedade; “um meio para um fim” porque o terror social não é um fim em si mesmo, mas sim uma ferramenta para se alcançar um objetivo maior: influenciar as pessoas, provocar a estrutura do Estado, alterar a sociedade; “dotado de significado” porque ele tem uma razão maior, é uma resposta a algo e procura influenciar uma sociedade.
O ato terrorista não tem como objetivo ferir as pessoas, mas afetar o mundo ao seu redor por meio do ferimento. Todo ato terrorista transmite uma mensagem, ao que se deve ao fato de seus alvos serem civis, geralmente em locais pacíficos, e não militares em campo de batalha. Em sentido denotativo, o terrorismo foi definido, aqui, como uma “provocação metódica do medo”.
Acrescentando o conteúdo histórico (conotação) à definição, o terrorismo pode ser definido como “a utilização ideológica do medo como ferramenta de coação pública por uma organização”[15].
O que são as facções?
As principais facções brasileiras, Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), nasceram com o objetivo de organizar, cada uma em sua época, os detentos nos presídios para lutar contra as más condições e maus tratos, o que se estendeu, ao longo do tempo, à criminalidade na rua devido aos laços de lealdade estabelecidos pela estrutura faccional. Com o passar do tempo, as facções estenderam as suas atividades para o tráfico de drogas e o consequente controle de territórios.
As facções costumam atuar “nas sombras”, no submundo da sociedade, evitando que suas ações chamem a atenção. Na verdade, o momento em que as facções de fato chamam a atenção da sociedade e das autoridades é quando elas entram em conflito entre si ou contra as forças de segurança. Fora desse cenário, as facções agem silenciosamente, pois os seus objetivos são alimentar a sua estrutura interna (pagamento de funcionários, compra de equipamento, compra de drogas etc.) e enriquecer os seus principais líderes e parceiros [16].
Há algumas ações das facções que costumam ser tachadas de terroristas devido à sua dimensão: queima de ônibus em vias públicas, confronto direto com o Estado e ameaça a moradores. É necessário analisar uma a uma para entender o que está por trás dessas ações.
Em relação à queima de ônibus, prática já conhecida das facções e das milícias, faz-se necessário analisar o contexto. Quando o Comando Vermelho, em 2017, ateou fogo em alguns ônibus [17] após uma operação da polícia com objetivo de interferir na disputa pela Cidade Alta, à queima de ônibus foi usada como tática para desviar a atenção da polícia. Algo muito comum na atuação do Comando Vermelho é a criação do caos local como forma de coibir a atuação policial [18]. Tanto foi assim que a ação foi acompanhada de um grupo de populares das proximidades para saquear, conjuntamente, alguns caminhões.
Há outros contextos em que a queima de ônibus pode ser considerada um ato terrorista, como foi em novembro de 2025, em Belo Horizonte [19], quando homens armados queimaram um ônibus e deixaram uma carta a ser entregue à polícia. Na carta, eles exigiam um melhor tratamento aos detentos e teciam ameaças caso o pedido não fosse acatado, em uma clara atitude de desafio ao Estado e amedrontamento público [20]. Porém, este ato foi como um protesto, motivado por uma certa “injustiça”, e não como uma tática dentro de um plano maior, como libertar os presos.
A situação de medo em que vivem os moradores das favelas, os primeiros e principais a serem afetados pelas ações das facções, é um dos propulsores do debate sobre o caráter terrorista das facções. As expulsões realizadas por faccionados no Ceará têm levantado um grande debate sobre a gravidade do poder das facções, que conseguem tirar o direito à moradia de pessoas inocentes sem qualquer resistência. A questão é que as facções coagem os moradores por objetivos econômicos ou estratégicos, o que não tem caráter terrorista. Tomar a casa de uma pessoa para transformá-la em fonte de renda não é caracterizada como um ato de terror, mas um crime de esbulho possessório [21], potencializado pela dominação territorial.
Há muitos casos que exemplificam esta abordagem: segundo reportagem do G1 [22], moradores e ex-moradores da favela Muzema, que fica no Recreio dos Bandeirantes, relatam que o Comando Vermelho toma casas para revenda. O mesmo comportamento se replicou na Bahia, em um condomínio do Minha Casa Minha Vida [23], onde faccionados tomaram residências para alugar e vender. Um caso diferente, mas que tem como fim o mesmo objetivo de gerar rendimentos para a facção, é o do bairro carioca Rio Comprido, onde moradores relatam a invasão e posse de casas para torná-las pontos de venda de drogas [24].
As pequenas ondas migratórias causadas pelas expulsões de moradores ou mesmo saída voluntária dos moradores por medo das guerras entres as facções não parecem, até onde analisadas, provocadas com o objetivo de gerar algum tipo de impacto na sociedade, sendo apenas consequências naturais da presença das facções. Todas as ações das facções servem apenas para alimentar e manter as suas próprias estruturas sem nenhum objetivo maior.
Todo o debate sobre a classificação das facções como organizações terroristas se deve ao apelo popular que a dominação de território e a violência desenfreada e desmedida decorrentes têm. De fato, as facções impõem uma ditadura sobre os moradores das favelas e bairros pobres por meio de repressão direta, ameaças e mortes. O que está em jogo é a tipificação correta, que levará a uma determinada forma de combate às facções e às milícias.
A partir do que foi apresentado e analisado sobre o terrorismo, suas compreensões e expressões, pode-se concluir que as facções não são terroristas, pois elas não têm o terrorismo como prática, isto é, suas ações não são politicamente motivadas, elas não têm objetivos sociais maiores do que a satisfação da sua estrutura e nem têm o medo social como um método para alcançar os seus objetivos. As facções são autocentradas [25] . Aqui, é defendido que as facções brasileiras são organizações criminosas de um novo tipo, isto é, elas não são nem terroristas, nem gangues e nem máfias. Elas são organizações que procuram, cada uma, monopolizar a atividade criminosa — as menores, em suas regiões, as maiores, em todo o país [26].
As facções não procuram alterar a sociedade ou mesmo o Estado, mas também não são simples associações de bandidos. Elas procuram facilitar a sua operação aliciando agentes do Estado ou mesmo se infiltrando diretamente, mas não têm qualquer objetivo que ultrapasse a construção de uma comodidade para suas atividades. Segundo os pesquisadores Eduardo Armando Medina Dyna e Vinicius Pereira de Figueiredo, em entrevista ao Jornal da USP, ao falar sobre o PCC e o CV — mas que, aqui, considera-se que vale para todas as facções, pois o modo de operar não difere consideravelmente —, afirmam que elas “não querem o poder do Estado, e sim uma relação de simbiose, uma relação parasitária, de exploração do Estado. As condições atuais já são positivas para eles”.
As facções não são grupos de rua que procuram apenas cometer crimes simples, como gangues, mas construir uma economia paralela [27] que envolve comércio de drogas, nacional e internacional, comércio de armas, venda de produtos roubados, pirataria, cobrança de taxas sobre comércio local, entre outras atividades. Para proteger essa construção, que está em curso há décadas, as facções são capazes de entrar em confronto bélico — e somente bélico — direto com o Estado, o que é evitado o máximo possível — o que pode ser atestado, por exemplo, pelo pagamento de suborno às polícias —, pois o objetivo não é derrubar, tomar ou derrotar o Estado. As facções preferem se relacionar pacificamente com o Estado.
O que seria, então, uma “organização criminosa de novo tipo”? Como ela poderia ser chamada? Os fundadores do PCC, no estatuto, referem-se à facção como “partido”. Pelo contexto, a denominação parece ser apenas um indicativo do teor da organização, que não era apenas uma associação, um negócio, mas uma união que demandava lealdade irrestrita e dedicação total à “causa”. Há uma palavra que é comum às principais e primeiras facções do país: comando. O Comando Vermelho, o Primeiro Comando da Capital, o Terceiro Comando e o Terceiro Comando Puro; depois surgiram o Primeiro Comando Mineiro, o Primeiro Comando de Vitória e o Comando Classe A.
Voltando ao já citado Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, um comando é “Ação de comandar; direção superior de tropas; local, sede de comandância”. O Dicionário UNESP de Português contemporâneo define comando como “1 governo de uma divisão de tropas: O comando do Segundo Exército ficou a cargo de um general amigo do presidente. 2 condução; liderança: O centroavante assume o comando do ataque. 3 controle: O comando de nossos movimentos está no cérebro. (...) 9 equipe de coordenação de uma atividade: Dois empresários, um banqueiro e três intelectuais formam o comando da companhia política do senador.”
A partir destes exemplos, pode-se perceber que o comando está intrinsecamente relacionado ao poder: o comando é o que determina e só comanda quem pode determinar. Pelas definições apresentadas pelos dicionários usados para consulta, pode-se perceber também que existe um arranjo (oficial) hierárquico dentro do qual há relações de direção e subordinação. Só é possível comandar quem se insere em uma estrutura ou é submetido a ela devido ao seu poder, que não pode ser desconsiderado. As facções brasileiras não são grupos ou associações de criminosos, mas companhias em que há um núcleo mandante, que impera sobre toda a estrutura [28] . As facções são hierarquizadas com tarefas específicas para cada parte. Nas regiões dominadas pelas facções, a permissão ou proibição para a realização de um crime depende da decisão dos superiores.
A ordem vale não apenas para os membros da facção, mas para qualquer pessoa que queira cometer crimes dentro da área de domínio da facção. Um caso emblemático foi a proibição de roubos, assaltos e mesmo conflitos armados pela cúpula do Comando Vermelho aos chefes das comunidades durante a reunião do G20 [29] . Da mesma forma, elas organizam a vida dentro das suas áreas de domínio, determinando quem pode entrar, como deve se vestir, como deve se comportar e mesmo, no caso especial do Terceiro Comando Puro, qual religião deve seguir [30].
As facções procuram organizar toda a vida da sua área de domínio de acordo com os seus próprios desígnios para garantir o funcionamento estável da sua estrutura e das suas atividades. Elas procuram organizar aquela parcela de sociedade para si, e não para o mundo. Seus planos não correspondem a uma ordem superior, como uma ideologia ou doutrina religiosa, mas às suas próprias necessidades de sobrevivência, segurança e funcionamento [31].
Para classificar as facções, conclui-se aqui que elas são o que elas vêm se nomeando: comandos centrais (do crime) — organizações monopolizadoras que constroem uma economia paralela dentro de seus territórios, dominados por meio de seus braços armados.
É importante ter claro como a atividade faccional é realizada: os setores armados, operantes diretamente nas favelas, criam a base para o restante das atividades da facção. Eles geram receita ininterrupta, constroem espaços seguros e garantem a presença e domínio da facção na sociedade; as atividades intelectuais e complexas, como lavagem de dinheiro e inserção em atividades empresariais, ficam a cargo de setores especializados não-armados, um nível mais alto na pirâmide do crime organizado. Porém, é importante ter em mente que todo o funcionamento da facção começa e termina no mesmo grupo dirigente, a quem se destina o lucro das atividades.
Conclusão
A análise das manifestações do terrorismo e da atuação das facções criminosas brasileiras, como: PCC e CV, sugere uma distinção fundamental na classificação desses grupos.
Por meio deste estudo, entende-se que o terrorismo, em sua acepção plena é substanciado por uma lógica e sentido diferentes daqueles das facções. Ele é socialmente motivado e serve como um meio para um fim maior, de caráter político ou ideológico, buscando alterar o sistema ou influenciar a sociedade. O ato terrorista é concebido para transmitir uma mensagem e causar impacto na coletividade.
Por outro lado, as facções, embora sejam violentas e amedrontadoras, são fundamentalmente autocentradas, fazendo com que suas ações e medidas, que não são voltadas para a sociedade, não tenham o mesmo conteúdo que o terrorismo. Seus objetivos primários são estruturais — alimentar a própria organização, garantir a continuidade de suas atividades criminosas (tráfico, extorsão, etc.) — e econômicos — enriquecer seus líderes, garantir lucro para reinvestimento, expansão, etc.
O medo e o caos que geram são, na maioria das vezes, consequências naturais de suas operações de domínio territorial e conflitos. Em vez de buscarem uma transformação política do Estado, as facções procuram uma relação de simbiose ou parasitismo para facilitar as suas operações e garantir o funcionamento da economia paralela dentro de suas áreas de influência. Essa distinção na classificação é crucial, pois a forma de combate e a legislação aplicável para lidar com o terrorismo e o crime organizado de alto nível deve ser distintas, refletindo suas naturezas, motivações e fins.
Para combater as facções é necessário que o Estado brasileiro seja capaz de realizar em algum nível um “experimentalismo institucional”, pois formas convencionais de combate ao crime e mesmo ao terrorismo não serão capazes de fazer a depuração necessário da estrutura estatal e combater o crime organizado de alto nível nas cidades brasileiras.
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Notas de Rodapé:
Historiador e Técnico em Informática. Atuante na política desde 2016, já passou por três partidos e atualmente integra o Brasil Grande e o Sol da Pátria, onde mantém um quadro no canal do You Tube®.
Neologismo a partir do verbo tachar.
Neologismo a partir do termo gangue.
Isto é, por que essa palavra, e não outra para descrever determinadas atividades.
Para ser considerado terrorismo, o ato de violência deve ser perpetrado por alguma entidade organizacional com pelo menos alguma estrutura conspiratória e uma cadeia de comando identificável, que vá além de um único indivíduo agindo por conta própria.
É plenamente possível uma pessoa, sozinha, idealizar, organizar e executar um ato terrorista, considerando estritamente o terrorismo como um "modo de fazer", porém, aqui, analisa-se a manifestação histórica do terrorismo, que tem sido, de uma forma ou de outra, coletiva.
Enquanto o objetivo do terrorista é, inevitavelmente, político (mudar ou alterar fundamentalmente um sistema político por meio de um ato violento), o objetivo do assassino insano é, com mais frequência, intrinsecamente idiossincrático, completamente egocêntrico e profundamente pessoal.
John Hinckley, que tentou assassinar o presidente Reagan em 1981 para impressionar a atriz Jodie Foster, é um exemplo disso.
Referência: edition.cnn.com/2012/01/24/justice/hinckley-hearing.
Um terrorista é uma pessoa que, antes de tudo, comete atos destinados a aterrorizar, a assustar.
Em seu palco, ele ou ela se apresenta para um público que vai além dos refletores da ribalta.
O terrorista tem como objetivo espalhar o terror para levar as pessoas a fazerem, ou a deixarem de fazer, certas coisas. O terrorista age dessa maneira para fins que são, em linhas gerais, políticos.
Disponível em: g1.globo.com/mundo/noticia/2015/11/tiroteios-e-explosoes-sao-registrados-em-paris-diz-imprensa.html. Acesso em: 22 nov. 2025.
Disponível em: g1.globo.com/mundo/noticia/2024/08/03/atentado-somalia-deixa-30-mortos-e-feridos.ghtml Acesso em: 22 nov. 2025.
Aqui, mantém-se a compreensão de que o terrorismo se manifesta coletivamente. Como pontuado em nota de rodapé anterior, o terrorismo está sendo considerado em seu sentido e na sua manifestação histórica, que tem sido majoritariamente coletiva, isto é, empregada por uma organização.
Empresários, políticos, traficantes internacionais etc..
Disponível em: brasil.elpais.com/brasil/2017/05/03/politica/1493769552_265194.html. Acesso em: 23 nov. 2025.
Disponível em: https://www.google.com/search?q=noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2025/10/28/cv-toque-de-recolher-comercios-operacao.htm Acesso em: 24 nov. 2025.
Disponível em: g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2025/11/05/homens-incendeiam-onibus-em-vespasiano-e-deixam-carta-com-ameacas-video.ghtml Acesso em: 25 nov. 2025.
Esse tipo de preocupação com a situação de detentos é comum entre as facções, e não entre bandidos comuns. A solidariedade dos que estão soltos com os que estão presos é um dos laços que mantêm as facções coesas e firmes, pois a lealdade é algo importante no meio do crime organizado. Três grandes facções disputam Belo Horizonte: Terceiro Comando Puro, Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital.
Um conceito do direito civil que se refere à situação em que alguém é despojado de sua posse de forma injusta, ou seja, quando alguém é privado do uso e gozo de um bem ou propriedade que estava em sua posse legítima. Fonte: https://www.google.com/search?q=jusbrasil.com.br.
Disponível em: g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/11/01/em-guerra-com-a-milicia-trafico-obriga-donos-de-imoveis-na-muzema-a-irem-ao-alemao-provar-a-posse-nao-tem-tu-perdeu.ghtml Acesso em: 28 nov. 2025.
Disponível em: correio24horas.com.br/minha-bahia/traficantes-expulsam-moradores-do-minha-casa-minha-vida-0225 Acesso em: 28 nov. 2025.
Disponível em: https://www.google.com/search?q=veja.abril.com.br/brasil/traficantes-expulsam-moradores-de-casa-no-rio-comprido-na-zona-norte-do-rio/ Acesso em: 29 nov. 2025.
É claro que tiroteios, latrocínios cometidos por membros das facções ou a presença de armas à vista de todos geram medo nas pessoas, porém esse comportamento não é aplicado metodicamente tendo o medo como objetivo e nem procura criar uma opinião pública sobre algo, sobre a política, sobre um grupo social, uma religião etc..
Daí advém a necessidade do controle territorial, pois quanto mais territórios uma facção tem, mais monopólio sobre a criminalidade ela tem, fazendo com que os seus rendimentos aumentem exponencialmente. As facções não vieram para organizar o crime, mas para monopolizá-lo sob um nome.
Do inglês shadow economy.
Disponível em: scielo.br/j/csc/a/DLg4BRgqKc4HhWZpZ3WptVn/?lang=pt Acesso em: 30 nov. 2025.
Disponível em: oglobo.globo.com/rio/noticia/2025/05/18/comando-vermelho-ordenou-tregua-de-crimes-para-reuniao-do-g20-no-rio-revela-policia-federal.ghtml Acesso em: 30 nov. 2025.
São amplamente conhecidos os casos de jovens que morreram por usar uma roupa com o símbolo de determinada marca, como Adidas ou Nike, pessoas que tiveram seus carros fuzilados por adentrarem uma favela por engano, de expulsão de moradores e o caso especial do TCP, que proíbe a prática de qualquer religião que não o cristianismo evangélico.
O caso do traficante da parte do TCP que está sob a direção do Peixão é interessante. Muitas pessoas acreditam que o seu grupo é uma espécie de força paramilitar evangélica, mas, na verdade, essa imposição da sua crença sobre o território dominado parece antes a construção de uma cultura local ou faccional. Pela própria prática da facção, pode-se perceber que a religião é submetida a ela, e não o contrário.
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