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Adultização da infância e infantilização da vida adulta: as duas faces da mesma moeda

Por Marcos Jr. [1]


No início de agosto, um vídeo de cerca de cinquenta minutos, em tom de denúncia, movimentou a imprensa e as redes sociais ao longo de todo o mês. Publicado pelo influenciador digital Felipe Bressanim Pereira, também conhecido como Felca, o conteúdo [2] causou frisson no debate público sobre a adultização e sexualização de crianças – apesar de ambos os fenômenos terem relação, não se tratam da mesma coisa, o que explicarei mais adiante – e motivou a apresentação de projetos de lei com essa finalidade, sendo que um deles fora aprovado no último dia 27 [3] e aguarda sanção presidencial.

Sem mais delongas, pretendo apresentar alguns pontos de vista neste ensaio sobre o tema, alguns deles já externados por este que vos escreve em uma transmissão ao vivo, realizada no último dia 14 [4] para tratar do mesmo. O primeiro deles é que, diferentemente do que Felca dá a entender em sua denúncia em vídeo, a adultização de crianças não se trata de um fenômeno da era das redes sociais. É algo mais antigo, que remonta, pelo menos aos anos 90 quando a própria Internet era ainda uma novidade no Brasil e a TV aberta era rainha absoluta enquanto fonte de informação e lazer nos lares de nosso país.


Imagem de TV antiga mostrando o palco do programa "H", com a apresentadora Suzana Alves, mais conhecida como Tiazinha, ao fundo. Ela está com um microfone na mão. Várias crianças e adolescentes em trajes de dança se apresentam na frente, com um estilo que remete ao final dos anos 90.
Figura 1 – Crianças rebolando ao som da música “Dança da Garrafa”, interpretada pelo grupo É o Tchan, no programa Xuxa Park, exibido pela Rede Globo. (Fonte: Memória X/Facebook)

Na Figura 1 acima (vocês podem conferir o vídeo aqui [5]) é um notório exemplo de exposição de crianças a práticas normalmente adultas há quase trinta anos, em um dos principais programas infantis exibidos pela TV aberta àquela época, mais precisamente pela emissora líder de audiência. E era longe – mas muito longe – de ser um caso isolado: cenas como essa eram praticamente a regra em programas similares em outras emissoras. Quem não se lembra de uma criança se declarando de forma, digamos, insinuante para Carla Pérez [6] em pleno Domingo Legal? Ou ainda de figuras como Tiazinha e Feiticeira [7], personagens interpretadas, respectivamente, por Suzana Alves e Joana Prado no programa H, apresentado por Luciano Huck na Band entre 1996 e 1999 e que foram a cara para diversos produtos, incluindo calçados infantis (conforme este comercial [8] (Figura 2) do “tamanco da Tiazinha”)?


Montagem de fotos para um meme que evoca a nostalgia da infância brasileira dos anos 90. A imagem superior mostra um par de tamancos pretos, que eram um item de merchandising da personagem "Tiazinha". A imagem inferior mostra um close do rosto da personagem, com sua marcante máscara preta.
Figura 2 – Tamanco da Tiazinha, produto vendido para crianças no final dos anos 90. (Fonte: Velhos Tempos/Facebook)

Isso sem falar nas cenas de sexo, violência, consumo de drogas e outros conteúdos deletérios – ou de gosto, no mínimo, duvidoso – que eram exibidas na TV aberta, com pouco ou nenhum filtro em horários em que toda a família, incluindo as crianças, estava em frente à telinha.

E sim, isso já era motivo para comentários na imprensa, como estas três matérias publicadas na Folha de S. Paulo: uma delas, de 13 de julho de 1997, era um artigo de opinião que abordava o episódio da “boquinha da garrafa” [9] e outros momentos de erotização nos programas da Xuxa; outra, de 17 de agosto do mesmo ano, também era um artigo que abordava uma situação similar no Domingo Legal [10], apresentado pelo Gugu Liberato; por fim, uma reportagem, publicada em 3 de maio de 1998 para o mesmo jornal e escrita por Gilberto Dimenstein (que posteriormente seria o fundador do Catraca Livre), já abordava as preocupações das influências desse tipo de conteúdo [11] para crianças e adolescentes.

Portanto, essa temática – e problemática – da adultização não é nenhuma novidade para quem é minimamente curioso sobre questões envolvendo infância e adolescência. No entanto – e nisso reside o mérito do Felca – as redes sociais ajudaram a alavancar isso a um novo patamar, mais difícil de controlar e, portanto, mais perigoso.

O segundo ponto é que, como disse no primeiro parágrafo, adultização e sexualização, ainda que sejam fenômenos interligados, não são a mesma coisa. Adultização trata-se de um fenômeno mais amplo, que, grosso modo, significa a exposição, introdução e ensino de hábitos adultos a crianças e adolescentes, de maneira precoce, antes de sua formação física, mental, moral e, por que não, espiritual. Com isso, etapas importantes dessa formação são “queimadas”, prejudicando o desenvolvimento futuro dessas pessoas enquanto seres humanos e cidadãos no médio e longo prazo. De um incentivo ao uso de batom por uma menina pequena até a mostrar a um menino um vídeo glamourizando o consumo sem restrições de bebidas alcoólicas, há diversas maneiras de induzir essa adultização, muitas vezes sem se dar conta disso.

Já a sexualização – também conhecida como erotização –, quando interseccionada ao contexto dessa adultização, é um fenômeno em que essas mesmas crianças e adolescentes são expostas, introduzidas ou ensinadas a práticas (muitas dessas danosas mesmo em adultos) que podem levar a uma iniciação precoce de sua vida sexual, antes de sua formação completa, muitas vezes sem tomar nota das consequências do que está fazendo – consequências estas que poderão carregar pela vida inteira. Por isso mesmo, talvez, que seja o subconjunto mais danoso e perigoso. E também permite entender o motivo de tanto enfoque, como foi dado na denúncia em forma de vídeo pelo Felca.

O terceiro ponto é que, se, por um lado, o fenômeno da adultização é uma “novidade” que tem, pelo menos, três décadas no contexto midiático brasileiro (em outros contextos isso é ainda mais antigo), por outro, o advento das redes sociais e plataformas digitais amplificou – e muito – o potencial de exposição e os riscos decorrentes disso. Se antes a mídia, para muitos, era restrita a uma meia dúzia de canais com um escopo limitado de programas e horários e, caso o conteúdo fosse impróprio, bastava apertar o botão de liga/desliga da televisão ou do controle remoto desta e procurar outras formas de entretenimento, hoje o que temos é uma miríade de canais, páginas e perfis na web [12] que, com uma quase incalculável quantidade e variedade de conteúdos que podem ser acessados a qualquer hora, em qualquer lugar e em qualquer dispositivo - computador, celular, tablet ou Smart TV.

E isso sem falar nos mecanismos que essas plataformas desenvolvem, como algoritmos e a rolagem infinita de tela, de forma a prender a atenção de seus usuários, como hamsters girando uma roda numa gaiola. Na realidade, quando falei da miríade de possibilidades no parágrafo anterior, eu me esqueci de um ponto não menos importante, quiçá o principal: cada usuário pode, inclusive, ser um próprio canal, produzindo seus próprios conteúdos a qualquer hora, de qualquer lugar, bastando um simples celular (smartphone) ou tablet.

Tendo em vista isso, essa nova dinâmica assume contornos perigosos quando a sexualização de crianças e adolescentes entra em jogo. Afinal de contas, uma simples foto ou vídeo, aparentemente inocente, de uma criança ou adolescente usando uma roupa de praia ou dançando balé com uma roupa típica, por exemplo, atrairá toda sorte de audiência, inclusive a de pedófilos, abusadores e outros tipos similares de predadores.

Mas o pior – e também é outro ponto meritório que está no vídeo no Felca – é quando certos canais, de maneira deliberada, promovem essa sexualização e outros comportamentos tipicamente adultos em crianças e adolescentes, com o intuito de ganhar audiência e, evidentemente, monetizar, auferindo receita em cima de uma exposição que coloca essas pessoas sob riscos não totalmente concebíveis. Em um dos trechos de vídeos exibidos na denúncia do influenciador digital (mais uma vez, recomendo que assistam), uma pré-adolescente dançava, de maneira bastante sensual, ao som de funk, para uma plateia adulta. Isso sem falar na venda de conteúdos de pornografia infantil diretamente a esses predadores sexuais e outras questões aterradoras que, por questão de tempo e de sensibilidade em relação aos leitores, não serão aprofundadas neste ensaio.

Dito isso, iremos ao quarto ponto: a responsabilidade das redes sociais nessa questão, bem como sobre a regulação dessas plataformas. Meu posicionamento quanto a isso é o mesmo [13] de quando a temática esteve à tona no debate público no ano retrasado: sim, as redes sociais possuem responsabilidade – mesmo que apenas subsidiária (muito embora em certas ocasiões deva ser solidária) – sobre os conteúdos publicados pelos seus usuários, visto que elas são o meio em que estes são veiculados – neste caso, tem-se a similaridade com outros canais de mídia de massa. E neste caso, temos o corolário de que a discussão não deve ser se devemos ou não devemos regular, mas sim como se deve dar essa regulação.

Essa discussão – inclusive um dos pivôs ocultos do tarifaço de Trump sobre o Brasil – deveria ensejar um novo desdobramento: por que seguirmos dependendo de plataformas estrangeiras? Por que não desenvolvermos plataformas nacionais que, de fato, se submetam ao ordenamento jurídico do Estado brasileiro, livres de embaraços de potências estrangeiras? São as perguntas motivadoras de um novo conceito: o de soberania digital (que, quem sabe, será tema de discussão de um novo artigo).

Por fim, mas nem por isso sendo o menos importante, o quinto ponto: ao mesmo tempo que existe uma negligência – quando não conivência – com a adultização de crianças a adolescentes, há um movimento – consciente ou não – de infantilização da vida adulta, no sentido de incentivar um comportamento em que a pessoa queira ter todos os bônus dessa fase sem querer assumir os devidos ônus. A promoção da (sub)cultura funk (nesse meio também incluo o trap, e recomendo que assistam a esse vídeo [14] de Samuel Baum), e a ascensão de influenciadores digitais cuja única utilidade – se é que dá para usar esse termo – é fazer propaganda de jogos de azar virtuais15, assim sendo, são apenas dois dos vários exemplos disso.

E, no final das contas, tanto a adultização da infância como a infantilização da vida adulta são duas faces de uma mesma moeda: a de tornar a pessoa um eterno (e mal-acabado) adolescente, com muita iniciativa de ação, mas incapaz de medir as consequências de seus atos. E isso, infelizmente, traz consequências deletérias a todas as esferas da sociedade, da família à formulação e execução de políticas públicas. Mas isso é um tema para outro ensaio. Até a próxima.



Notas de rodapé:


  1. ENGENHEIRO de Produção.

  2. [Vídeo]. [S. l.]: YouTube, 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FpsCzFGL1LE. Acesso em: 10 set. 2025.

  3. ADULTIZAÇÃO: Senado aprova regras para proteção de crianças na internet. CNN Brasil, [S. l.], 13 nov. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/adultizacao-senado-aprova-regras-para-protecao-de-criancas-na-internet/. Acesso em: 10 set. 2025.

  4. [Vídeo]. [S. l.]: YouTube, 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Et2PDI3xNmw. Acesso em: 10 set. 2025.

  5. [Vídeo]. [S. l.]: Facebook, 2024. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/?v=1772089203074460. Acesso em: 10 set. 2025.

  6. [Vídeo]. [S. l.]: YouTube, 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/shorts/siwO5u3yUtI. Acesso em: 10 set. 2025.

  7. EX-TIAZINHA Suzana Alves revela que sentiu ciúme da Feiticeira. O Tempo, Belo Horizonte, 29 dez. 2023. Disponível em: https://www.otempo.com.br/entretenimento/celebridades/ex-tiazinha-suzana-alves-revela-que-sentiu-ciume-da-feiticeira-1.3027843. Acesso em: 10 set. 2025.

  8. [Vídeo]. [S. l.]: YouTube, 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lSMHRGEOyqo. Acesso em: 10 set. 2025.

  9. [Título do Artigo]. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 jul. 1997. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/7/13/tv_folha/1.html. Acesso em: 10 set. 2025.

  10. [Título do Artigo]. Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 ago. 1997. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/8/17/tv_folha/1.html. Acesso em: 10 set. 2025.

  11. [Título do Artigo]. Folha de S. Paulo, São Paulo, 3 maio 1998. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff03059805.html. Acesso em: 10 set. 2025.

  12. WEB – WWW – World Wide Wed – simplesmente Internet.

  13. REGULAÇÃO das Redes Sociais: uma questão de necessidade e soberania. Brasil Grande, [S. l.], [S.d.]. Disponível em: https://www.brasilgrande.org/post/regulação-das-redes-sociais-uma-questão-de-necessidade-e-soberania. Acesso em: 10 set. 2025.

  14. [Vídeo]. [S. l.]: YouTube, 2024. Disponível em: https://youtu.be/GaCoiofiTic?si=IhqlYqu3tFtW-DhC. Acesso em: 10 set. 2025.

  15. A FINANCEIRIZAÇÃO, parte II: do day trade ao tigre da fortuna. Brasil Grande, [S. l.], [S.d.]. Disponível em: https://www.brasilgrande.org/post/a-financeirizacao-parte-ii-do-day-trade-ao-tigre-da-fortuna. Acesso em: 10 set. 2025.

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