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Como estados caem e se reerguem: o caso do Espírito Santo

Marcos Jr.[1]


Quem acompanha meus artigos há mais tempo neste espaço sabe que sou nascido e

vivo no estado do Espírito Santo, que nos últimos anos vem despontando enquanto um

verdadeiro “oásis” de crescimento econômico sólido, investimentos públicos e privados

robustos, um setor público bastante técnico e profissional e contas equilibradas, fato esse

evidenciado pela “nota A[2]” no Tesouro Nacional pelo 13º ano consecutivo. Modéstia à parte, enquanto capixaba, somos um modelo para outros estados e, por que não, para o nosso Brasil em muitos aspectos.

No entanto, quem vê esse cenário aparentemente invejável para muitos – inclusive

tive a oportunidade de fazer dois vídeos sobre a economia do ES, vocês podem conferir aqui[3] e aqui[4] – não imagina o caminho longo – e árduo – que o poder público e a sociedade civil capixaba precisaram trilhar para chegar a esta posição. Muito menos que, pouco mais de duas décadas antes, o estado estava financeiramente esfacelado – com servidores públicos sem receber salários há três meses –, o crime organizado havia se infiltrado na política, na polícia e no Judiciário e os índices de criminalidade faziam o estado capixaba, sobretudo na região metropolitana de Vitória, a capital, figurar entre os mais violentos do país[5], período esse compreendido entre os anos da década de 90 e o início dos anos 2000.

A história desse processo que levou o estado do ES a tamanho descalabro naquele

período, bem como, a reação de setores do poder público e da sociedade civil que

possibilitaram os capixabas a se reerguerem podem ser conferidas no livro[6] Decadência e

Reconstrução – Espírito Santo. Lições da Sociedade Civil para um caso político no Brasil

contemporâneo, escrito por Carlos Melo, Milton Seligman e Malu Delgado, que tive a

oportunidade de lê-lo e que, nos próximos parágrafos terei a oportunidade de compartilhar

minha resenha, sobretudo no tocante ao entendimento da história capixaba em tempos

recentes, bem como as lições que o Brasil, guardadas as devidas proporções, pode (e deve)

aprender. Sem mais para o momento, vamos lá.


Breve panorama histórico


Antes de descrever o processo de decadência político-institucional do estado do ES,

os autores fazem um breve resumo da história capixaba, iniciando a partir do século passado, fazendo as devidas relações entre os acontecimentos na esfera local e o cenário nacional, e apontando as devidas semelhanças e diferenças. No tocante a estas últimas, essas diferenças se devem a peculiaridades no processo de desenvolvimento capixaba – bastante tardio em relação aos demais estados do Sudeste brasileiro e com um mercado interno muito menor – levando à formação de uma burocracia profissional de ótima qualidade e a uma economia voltada ao comércio exterior, o que limitou os efeitos dos choques na economia nacional nos anos 80.

Os autores também descrevem, sucintamente, o processo de desenvolvimento

político-institucional do ES no período do Regime Militar – em que ocorreu o advento dos

“grandes projetos” industriais – bem como os governos estaduais do período de redemocratização, a saber, de Gerson Camata e Max Mauro, marcados pela profunda defesa do interesse público e pelo desenvolvimento da anteriormente mencionada burocracia profissional de alta qualidade, que formou bons quadros em nível local e mesmo nacional.

Melo, Seligman e Delgado fazem uma ponte com o processo de decadência político

institucional do ES, abordado nos capítulos seguintes, ao descrever o “presidencialismo de

coalizão”, arranjo político surgido com a nova ordem instaurada pela Constituição de 1988 e

marcado pela necessidade de formação de amplas alianças multipartidárias no Legislativo a

fim de assegurar a governabilidade e aprovar as pautas necessárias para o Executivo de

ocasião.

Quando transposto para a realidade política dos estados, com legislativos unicamerais

e com muito menos parlamentares que a Câmara dos Deputados, uma combinação de

fragmentação política nas Assembleias Legislativas e um Governo (no sentido de Executivo)

fraco são fatores preponderantes para um desarranjo político-institucional, com a captura do

Legislativo por um grupo de deputados corruptos e um governo refém de uma maioria

corrompida:

“Há uma armadilha no modelo político do presidencialismo de coalizão,

quando ele se projeta no plano estadual. Assembleias Legislativas com muito

menor número de deputados do que a Câmara Federal e, além disso,

fragmentadas tornam-se vulneráveis à captura de seu controle político por

um bando de deputados corruptos e os governadores acabam reféns desta

maioria corrompida. Se o governador resiste, perde as condições de

governabilidade. Se tenta enfrentar sozinho, sem respaldo político suficiente,

é derrotado. Se o governador se rende e paga o resgate demandado para

manter minimamente funcional a governança, ele se emaranha na teia de

corrupção.”

No caso do Espírito Santo, foi esse o estado de coisas que se configurou ao longo de

três sucessivos governos, ao longo dos anos de 1990 e início dos anos 2000, conforme

veremos na próxima seção.


Anos 90 e início dos anos 2000: a decadência institucional do ES nos governos de

Albuíno Azeredo e Vitor Buaiz


Conforme disse no início desta resenha, quem vê o Espírito Santo hoje, com uma

gestão pública eficiente, profusão de investimentos públicos e privados e indicadores

econômicos e sociais melhorando em múltiplas frentes, além de um cenário político bem mais benigno se comparado à média nacional, não imaginam o nível de caos que imperava no estado capixaba ao longo dos governos de Albuíno Azeredo (1991-1994), Vitor Buaiz (1995-1998) e José Ignácio Ferreira (1999-2002).

Ao longo desses três governos, por razões distintas, o ES foi conduzido a um estado

de coisas que é descrito logo abaixo:

“Uma sequência de governos fracos permitiu que se formasse uma maioria

incontrastável na Assembleia Legislativa do estado, comandada por um

bicheiro, eleito deputado estadual e que, ao longo do processo, passou a

controlar sua presidência. Desta posição majoritária, neutralizava o Executivo

e estendia uma lucrativa e predatória rede de corrupção político-empresarial.

Seus principais instrumentos eram a manipulação de incentivos e isenções

fiscais em benefício próprio e de seus apadrinhados, e o uso dos instrumentos regulatórios do estado para achacar empresários. A violência policial atingiu níveis assustadores, com uma polícia dominada por um esquadrão da morte. Nem por isso a criminalidade diminuiu, muito pelo contrário, espalhou-se pela sociedade, pelo estado e pelo aparato policial.”


O primeiro deles, de Albuíno Azeredo (1991-1994) foi marcado, segundo o autor, por

um “populismo desprovido de visão política mais ampla”. Secretário de Planejamento no

governo de Max Mauro – e, de certa forma, tendo-o como seu padrinho político –, Albuíno

derrotou o então candidato José Ignácio Ferreira, na época no Partido Social Trabalhista, após uma campanha eleitoral em que ele largou como “azarão”, com um único dígito percentual de votos. Considerando o fato de ter sido secretário de um governo marcado pelo respeito com o erário e pelo enfrentamento ao crime, esperava-se a continuidade desse processo, conforme trecho abaixo:

“A forte atuação de Max Mauro contra o crime nos anos 1980 é de crucial

importância para entender a força com que ele conseguiu retomar esse

discurso em 2002, no auge da crise institucional, levando-o a quase derrotar

Paulo Hartung no pleito daquele ano para o governo do estado. “[José Carlos]

Gratz foi preso pela primeira vez no meu governo, pelo Aurich, numa casa de

jogo em Guarapari. Foi na Operação Marselha, da Polícia Federal”


No entanto, o que se observou não foi a continuidade desse processo: conforme

destacado pelos autores, os secretários do governo de Albuíno Azeredo foram em muitos

casos escolhidos conforme a necessidade de acomodação das alianças políticas em

detrimento das habilidades de gestão, sem falar em uma condução pouco responsável nas

contas públicas. O resultado foi crise financeira, uma sucessão de greves e, no final, um

governo tão enfraquecido politicamente que Albuíno sequer teve força política para indicar

seu sucessor nas eleições seguintes, em 1994.

Eleições estas que, disputadas logo após o advento bem-sucedido do Plano Real,

seriam marcadas, no plano estadual (recomendo a leitura deste artigo[7] sobre o processo

naquele período), por uma verdadeira “escolha de Sofia[8]” entre Vitor Buaiz, na época o

candidato do PT, e o folclórico – e polêmico – Cabo Camata, na época o candidato pelo então PSD e que já se tinha suspeitas de envolvimento com o crime organizado, suspeitas estas que tomariam corpo mais adiante, com este tornando-se, posteriormente, prefeito de

Cariacica, como se evidencia em uma matéria jornalística[9] de 1998.

Na época, Camata, então deputado estadual, era conhecido por uma retórica bastante

agressiva, sobretudo no tocante à segurança pública – antes de ser deputado ele fora policial militar e presidente da Associação de Cabos e Soldados (ACS), sendo expulso da corporação por indisciplina – e tinha propostas[10], para ser bem generoso, “heterodoxas” no tocante à área, visto que o estado do ES vivenciava uma escalada da criminalidade. Isso o catapultou ao segundo turno das eleições de 1994, se tornando o principal desafiante de Buaiz.

Diante desse cenário, o então candidato petista ao governo do ES recebeu o

surpreendente apoio do tucano Fernando Henrique Cardoso (FHC), que derrotara Lula já no

primeiro turno das eleições presidenciais, bem como o da Arquidiocese de Vitória, que, de

maneira implícita, desaconselhava o voto[11] em Camata. Com isso, Buaiz conseguiu derrotar

Camata no segundo turno, com pouco mais de 55% dos votos válidos.


Vencida a eleição, Buaiz precisaria consolidar e ampliar sua base aliada na

Assembleia Legislativa, visto que seu bloco era minoritário e mesmo dentro do seu próprio

partido ele não era isento de críticas devido a sua postura moderada ao longo de sua carreira política recente – antes de ser governador, ele fora deputado federal e prefeito da capital Vitória. E duas decisões políticas de Buaiz, tomadas no começo de seu mandato, seriam fatais para seu governo.

A primeira delas foi conceder um generoso reajuste salarial linear ao funcionalismo

público, em um claro movimento de concessão aos sindicatos e aposta no fracasso do Plano

Real para estabilizar a economia e combater a inflação. A segunda, conforme relatado pelos

autores, por meio de depoimentos de atores políticos que vivenciaram aquele período, foi que Buaiz cedeu excessivamente a um setor fisiológico liderado pelo deputado estadual José Carlos Gratz, que mais tarde se tornaria presidente da Assembleia Legislativa, protagonizando a famigerada “era Gratz”.

Como o fracasso esperado pelo então petista para o Plano Real não veio, o efeito

prático do generoso reajuste salarial foi causar um rombo nas finanças do estado capixaba

(que já não estavam em bom estado antes), pavimentando o caminho para múltiplas e longas greves – sobretudo nas áreas da saúde e educação, geralmente lideradas por sindicalistas petistas. E essa fragilidade o tornava ainda mais refém das concessões que fazia a partidos de fora da coligação que o elegeu, o que também desagradava ao seu bloco. Essa situação em que Buaiz “apanhava de todos os lados” é registrada pelos autores do livro:

“É curioso notar como o governo Buaiz “apanhava” de todos os lados. Para

os liberais, ele errou ao ouvir Mercadante e não confiar na estabilização que

viria com o Plano Real. Na visão dos petistas, Vitor Buaiz era influenciado

demais por “neoliberais”. Para os empresários, o governador agia com

desmesurada desconfiança em relação à iniciativa privada; não era confiável.

Para os sindicatos, embora tivesse comprometido o orçamento com o

aumento salarial linear no início do mandato, teria feito pouco – sempre será

pouco. Discussões ideológicas à parte, a questão a ressaltar é o estado de

isolamento em que ficou o chefe do Executivo capixaba. Buaiz conseguiu se

indispor politicamente com a direita e com a esquerda, ficando sem apoio e à

mercê de interesses escusos – que ao longo do tempo macularam e

comprometeram sua administração.”

O resultado dessa combinação de fatores é que Vitor Buaiz, isolado politicamente, com

as finanças do estado em crise durante seu mandato e tendo que conduzir medidas que eram diametralmente opostas ao seu programa de governo – como a concessão da Rodovia do Sol no último ano – acabou rompendo com o PT em 1997, migrando para o PV (boa parte de seus aliados no governo fez o mesmo). Diante desse cenário e com baixíssima popularidade, optou por não concorrer à reeleição, apoiando o vice-governador Renato Casagrande em 1998, que acabaria perdendo para José Ignácio Ferreira, o último da “trinca” de governadores ruins e tema da próxima seção.


O ápice do caos com José Ignácio e a reação da sociedade civil capixaba


A disputa eleitoral de 1998 seria marcada pela reedição do embate de 1990, entre

José Ignácio Ferreira, agora no PSDB, e Albuíno Azeredo, ex-governador. O resultado, diante dos maus governos de Azeredo e Buaiz, foi uma vitória tranquila de Ignácio sobre seus adversários. No entanto, os problemas que tomaram forma nos governos anteriores se

agravariam de maneira dramática no governo do agora tucano, levando a uma crise

financeira, político-institucional e de segurança pública que quase levaria a uma intervenção

federal no ES.


Antes de debruçarmos neste ponto, é preciso fazer uma digressão que ilustra um

pouco do processo político no estado àquela época e nos permite entender como e por que o governo de José Ignácio naufragou no “mar de lama” no período: Ignácio disputou as prévias do PSDB para ser o candidato a governador contra Paulo Hartung, que fora prefeito de Vitória entre 1993 e 1997, e o derrotou, empregando meios pouco republicanos – isso apenas para usar um eufemismo – para vencê-lo. Hartung teria que se contentar em disputar o Senado (e acabaria ganhando), mas as insatisfações devido à forma injusta que se conduziu as prévias tucanas o levaria a deixar o partido em 2001.

Digressão feita, retornemos ao recorte histórico em questão: vencida as prévias, José

Ignácio disputaria o pleito contra outros quatro candidatos: Albuíno Azeredo, ex-governador entre 1991 e 1994; Renato Casagrande, vice de Vitor Buaiz e que mais tarde se tornaria governador do ES; Vasco Alves, que foi prefeito de Vila Velha e, posteriormente, Cariacica; e Jesus Vaz, então vice-prefeito de Cariacica. Diante da debacle do governo Buaiz e valendo-se do bom cenário para o PSDB em nível nacional, Ignácio venceria a eleição em primeiro turno com folga, com pouco mais de 61% dos votos válidos.

No entanto, o grupo político liderado pelo então deputado estadual José Carlos Gratz

seguiu majoritário na Assembleia Legislativa e, a despeito de ser parte da base de Ignácio,

tornaria este refém dos arranjos que tomaram corpo nos dois governos anteriores, a ponto de concessões de incentivos fiscais e indicações a diversas instituições do ES – polícias,

Ministério Público e Judiciário - precisarem passar pelo crivo desse grupo que tinha o

comando do parlamento. Se Azeredo e Buaiz viram seus governos naufragarem por inação,

Ignácio se tornaria partícipe desses esquemas, levando o descalabro político-institucional ao

seu ápice e inviabilizar o estado capixaba.

Na prática, o que se tinha era o que, segundo os autores, era um “parlamentarismo à

moda capixaba”, com Ignácio fazendo papel de chefe de Estado e Gratz, de governo. As já

mencionadas concessões de incentivos fiscais se tornaram “moeda de troca” no Legislativo,

e empresas e empresários eram aliciados ou chantageados (caso não aderissem aos

esquemas). Isso ficou evidente no caso da empresa Xerox em 2001:

“Se a política capixaba parecia totalmente entregue às engrenagens da

corrupção, outras revelações, desta vez no âmbito do setor privado,

aumentariam a sensação de incredulidade a respeito do lodaçal em que se

afundara o Espírito Santo. Em 2001, a multinacional Xerox denunciou

publicamente a cobrança de propina por agentes públicos e comunicou que

deixaria o estado. O caso puxou outro longo novelo histórico de degradação

política e moral, explicitando relações promíscuas entre o setor privado e o

setor público. [...]”

Nesse estado de completo descalabro, um grupo de empresários, líderes religiosos,

lideranças da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no ES, alguns políticos e outros

representantes da sociedade civil, ainda no começo de governo de Ignácio articularam um

movimento para reagir a esses desmandos: o Fórum Reage ES. Essa iniciativa, além de ter

organizado passeatas e manifestos pelo fim da impunidade, articulou o pedido de intervenção federal no estado em 2002, logo após o assassinato do advogado Marcelo Denadai[12], que preparava uma denúncia à Justiça acerca de fraudes em licitações em todas as prefeituras capixabas àquela época, bem como em algumas prefeituras do estado do Rio de Janeiro.

Este último fato, aliás, marcou o “fundo do poço” do estado de coisas presente no

Espírito Santo àquela época: somado a outros casos de corrupção nas diferentes esferas do

poder público e ao avanço do crime organizado inclusive nas forças de segurança, o pedido

de que a União interviesse no estado capixaba era um compreensível grito de socorro. No

entanto, devido ao fato de o governador ser do mesmo partido de FHC, então presidente da república e das implicações políticas que essa intervenção traria em um estado governado por um político do mesmo partido em pleno ano eleitoral, o pedido foi rejeitado.

No entanto, o Ministério Público Federal (MPF), aquele ano, designaria uma “missão

especial[13]”, junto com representantes da Polícia Federal (PF), Polícia Rodoviária Federal

(PRF) e Receita Federal para o enfrentamento ao crime organizado no Estado. Missão essa

que, a despeito de duros reveses que enfrentariam, seria importantíssima para se virar a

página do caos a partir daquele ano.


As eleições de 2002: o ponto de virada no Espírito Santo


Diante do caos que tomava conta do estado capixaba – caos este que se revelava na

precariedade da segurança pública e nas contas públicas em frangalhos, com até três meses

de salários dos servidores atrasados – o pleito de 2002 se tornava de suma importância. E os

dois principais candidatos a governador do ES naquele ano, Max Mauro e Paulo Hartung,

eram de oposição tanto a Ignácio, que, enfraquecido politicamente, sequer cogitou indicar um sucessor, como ao grupo liderado por Gratz na Assembleia Legislativa.

E ambos os candidatos tinham bons atributos e eram bem vistos por setores da

sociedade civil que queriam a mudança: Mauro, ex-governador, tinha como trunfo o

característico zelo com o interesse público e o enfrentamento ao crime organizado; já Hartung, por sua vez, tinha como trunfo o perfil de bom gestor de quando fora prefeito de Vitória e da defesa de boas práticas na administração pública, sobretudo quando fora senador. Eram perfis não necessariamente opostos entre si, mas complementares, tanto que movimentos como o Fórum Reage ES chegaram a tentar articular uma chapa formada por ambos, o que não aconteceu.

A despeito da vitória de Hartung ter ocorrido em primeiro turno, ela não foi tão fácil

como muitos podem pressupor a partir dos números: o ex-prefeito da capital capixaba travou

uma disputa acirrada com o ex-governador do estado, e ambos tinham pelo menos 40% dos

votos garantidos. No início da campanha, inclusive, era Mauro quem estava liderando as

pesquisas de intenção de voto, muito embora Hartung reverteria essa situação em setembro, mês anterior ao pleito.

O que foi decisivo para a vitória de Hartung foi a tentativa de Mauro de, às vésperas

do pleito, tentar associá-lo ao crime organizado, ligado ao bloco governista na Assembleia.

Esse movimento deu a entender ao eleitorado que Mauro perdeu o tom equilibrado até então, e garantiu os votos necessários ao ex-prefeito de Vitória para vencer no primeiro turno.

No entanto, conforme matéria da Folha de S. Paulo[14] na época e reforçado pelos

autores no livro, a vitória de Hartung estava longe ainda de normalizar o cenário político

institucional capixaba, visto que Gratz tinha sido reeleito deputado estadual, e o bloco liderado por ele era majoritário na Assembleia Legislativa, com poucos aliados do bloco que apoiavam Hartung. Mas a já mencionada missão especial de combate ao crime organizado acabaria causando uma rachadura nesse bloco majoritário: em novembro, Gratz teve o mandato cassado[15] por abuso de poder político, por utilizar recursos da Assembleia Legislativa para asfaltar ruas em Vila Velha, seu reduto eleitoral. A “missão especial” estava começando a surtir seus primeiros efeitos saneadores.

Em 2003, com Hartung já governador, o trabalho de equacionar as contas públicas e

organizar a gestão pública ocorreu concomitante ao trabalho de construir uma base aliada

sem aderir aos conchavos políticos que levaram o estado capixaba ao fracasso nos três

governos anteriores. E o posicionamento de Hartung, no período, ajudava nisso: apesar de ter feito boa parte de sua carreira política no PSDB, Hartung estava agora no PSB, partido

que integrava a base aliada de Lula, e tinha bom trânsito político entre os petistas – Cláudio

Vereza, do PT, então deputado estadual e que mais tarde seria o presidente da ALES[16], seria o principal aliado de Hartung no início de mandato.

A propósito, o episódio da eleição de Cláudio Vereza para o comando do legislativo

estadual foi um emblemático exemplo da dificuldade inicial para dar alguma moralidade à

coisa pública no Espírito Santo: na votação inicial, o ex-jogador Geovani, aliado de Gratz, foi

eleito presidente da casa, em uma sessão tumultuada e marcada por acusações de compra

de votos, que se avolumaram ao final do pleito interno. A votação foi anulada e, em nova

sessão, Vereza foi eleito. Era o começo do fim da era Gratz e de sua sombra no parlamento

estadual.

No entanto, a luta contra o crime organizado, tanto por parte do novo governo estadual como pela “missão especial”, enfrentaria um duro golpe em março de 2003, quando o juiz Alexandre Martins de Castro Filho, que, em sua atuação como magistrado[17], denunciou um esquema de venda de sentenças e participou da “missão especial” de combate ao crime organizado. No entanto, isso não abalaria o trabalho das instituições no saneamento políticoinstitucional do estado capixaba, e tanto mandantes como executores do crime seriam rapidamente presos. A força-tarefa se encerraria no segundo semestre daquele mesmo ano, uma vez que se entendeu que o ES tinha condições de “andar com as próprias pernas” nesse sentido.

Quanto ao equacionamento das contas públicas, Hartung agiu em duas frentes:

primeiro, conduziu um ajuste fiscal[18] tanto para cortar despesas como para ampliar receitas, organizando, inclusive a distribuição de incentivos fiscais às empresas, dando maior

centralidade ao Executivo no processo; segundo, obteve junto ao governo federal um

adiantamento das receitas provenientes dos royalties[19] de petróleo, o que permitiu certo fôlego para honrar compromissos de pagamentos atrasados com servidores públicos e

fornecedores. O que vem a partir daí, como os capixabas conhecem bem, é história: a

despeito dos percalços que vieram ao longo dos anos, o caos político-institucional reinante no ES foi superado durante as gestões de Hartung e Casagrande, que o sucedeu.


Lições importantes de “Decadência e Reconstrução”


Feito este breve – ou nem tão breve assim – resumo da obra, é preciso tirar algumas

lições que, guardadas as devidas proporções (afinal de contas, há uma diferença considerável entre gerir um estado com 4 milhões de habitantes e um país com 210 milhões), podem ser aplicadas ao crônico estágio de crise político-institucional que o nosso país vive, bem como em alguns estados onde esse quadro é bem mais grave (o estado do Rio de Janeiro é exemplo disso).

O primeiro é que, considerando o sistema presidencialista de coalizão adotado em

nível nacional e espelhado nos estados e municípios, um protagonismo crescente do

Legislativo, observado nos últimos quinze anos e acelerado nos últimos cinco com o

advento do “orçamento secreto” e visto como coisa de pouca importância ou mesmo

com certa complacência por setores da imprensa, é, na melhor das hipóteses, um sinal

de disfuncionalidade do sistema político e, na pior, uma porta escancarada para a

captura e a chantagem das instituições por interesses obscuros (para dizer o mínimo),

como o ocorrido no Espírito Santo. A crescente fragmentação partidária, que se observou

ao longo dos anos em ambos os níveis, também ajuda nessa disfuncionalidade.

O segundo é que processos de reconstrução político-institucional, via de regra,

são construídos a partir de um amplo arco de alianças políticas compostas por forças

heterogêneas, dos mais diversos matizes ideológicos. No caso capixaba, a reconstrução se

deu a partir de um governador que, apesar de ser do PSB (mais tarde migraria para o então

PMDB – hoje MDB – e agora está no PSD), tinha sido tucano no passado, mas, ao mesmo

tempo, dialogava com os petistas e com setores mais à direita do espectro político, como o

antigo PFL (depois Democratas, e hoje União Brasil) que, a despeito das numerosas

divergências ideológicas se uniram para colocar o ES no devido prumo.

Por fim, mas não menos importante – e longe de esgotar a discussão sobre o tema –,

é preciso consolidar a ideia de continuidade na administração pública, no sentido de

que existem políticas de Estado que precisam transcender os governos de ocasião. No

caso do Espírito Santo, o ciclo virtuoso iniciado no governo de Paulo Hartung (2003-2010 e

2015-2018) foi continuado em boa parte com Renato Casagrande (2011-2014 e 2019-atual),

ainda que com diferenças pontuais em certos aspectos. Além disso, aprofundou-se a

profissionalização do serviço público, de forma a garantir essa continuidade.

Acredito que um bom governo, que defenda o interesse nacional e o interesse público,

precisa de pelo menos esses três elementos: uma relação harmônica entre o Executivo e os

demais poderes, sem perder de vista seu protagonismo; construção de pontes com

segmentos diversos que também estejam dispostos a colocar o interesse nacional e o

interesse público acima de questões particulares; por fim, uma gestão pública profissional e

estável a ponto de assegurar a continuidade das políticas de Estado.

No mais, a despeito de erros pontuais em alguns dados (acredito que por erro de

digitação na versão para Kindle, onde li), recomendo fortemente a leitura deste livro,

sobretudo pelos depoimentos de figuras políticas e da sociedade civil que vivenciaram esses tempos dolorosos para o ES e o difícil processo de superação. Até a próxima.


Notas de Rodapé:


1- Engenheiro de Produção

capacidade-de-pagamento-e-na-qualidade-da-informacao-contabil

3- Disponível em: https://youtu.be/e-VUtHs_n5I?si=pNUK5EHDsJVb9Dkn

4- Disponível em: https://www.youtube.com/live/voRVLazF8N4?si=Atn09PafNLCk7npJ

5- Disponível em: http://biblioteca.ijsn.es.gov.br/Record/339280

6- Disponível em: https://amzn.to/4iqshf9

7- Disponível em: https://periodicos.ufes.br/agora/article/view/1955/1467

8- Expressão que indica uma imposição a uma decisão difícil, sob pressão e enorme sacrifício pessoal.

9- Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc19049805.htm

prometendo-bater-em-bandidos-0919

advogado-marcelo-denadai-vai-a-juri-popular-no-es.ghtml

o-crime-organizado

14- Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0710200233.htm

gratz

16- Assembleia Legislativa do Espírito Santo

a-morte-do-juiz-ha-20-anos-0323

18- Disponível em: https://iepecdg.com.br/podcast/podcast/paulo-hartung/

19- Verbete da língua inglesa, derivado da raiz da palavra "royal" que por convenção se trata de algo

que pertence ao Rei, usada também para se referir à realeza ou nobreza. A tradução literal de royalty

para a língua portuguesa é "regalia". Barbosa, Denis Borges. Tributação da Propriedade Intelectual:

Incentivos Fiscais à Inovação - Bases da tributação do IRPJ. Universidade do Estado do Rio de

Janeiro, Curso de Especialização em Propriedade Industrial, abril de 2006.


Bibliografia


MELO, Carlos; SELIGMAN, Milton e DELGADO, Malu. Decadência e Reconstrução – Espírito Santo. Lições da Sociedade Civil Para Um Caso Político no Brasil. Ed. Bei. 2020. 168p.

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