O século chinês
- Renzo Souza
- há 6 dias
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Por Renzo Souza [1]
O ano era 1600 da nossa era, o Império chinês era o mais avançado de todos os reinos unificados da Terra. A extensão de seus domínios territoriais era incomparável numa época em que a Rússia não possuía o tamanho que tem hoje. A se unir como país, a Índia estava dividida entre governantes mongóis e hindus, e uma combinação nefasta de doenças infecciosas e conquistadores espanhóis havia derrubado os outrora grandiosos impérios do México e do Peru. Só a população da China na época era cerca de 120 milhões, muito maior do que a de todos os países europeus juntos, anota o historiador e sinólogo Jonathan D. Spence.
A sua vasta burocracia já estava profundamente enraizada, harmonizada por um milênio de tradição e unida por um vasto conjunto de leis e disposições estatutárias que, pelo menos em teoria, poderiam oferecer conselhos relevantes sobre qualquer problema que pudesse surgir na vida cotidiana do povo chinês, mas, surpreendentemente, no período entre 1635-62, rebeldes: Li Zicheng e Zhang Xianzhong, um general bandido, Wu Sangui, e Dorgon e os bárbaros trouxeram revoltas e impuseram uma crise sem precedentes na história chinesa até aquele momento. O império Ming, após 2 séculos e meio, havia caído. As causas foram várias: pestes, seca, fomes e invasões inimigas constantes das tribos rivais. Não podemos esquecer também da já caduca administração Ming e da impossibilidade de manter exércitos nutridos e treinados constantemente.
A magnífica obra (A razão na história) do grande escritor alemão Hegel, abordando as categorias da história, dizia que:
Alude-se a regentes, a homens de Estado, a povos, sobretudo para a instrução mediante a experiência da história. Mas o que a experiência e a história ensinam é que povos e governos jamais aprenderam algo da história e atuaram segundo doutrinas que delas se teriam extraído”. (HEGEL, A razão na história. p19).
Para Hegel, cada época, cada povo, tem circunstâncias tão peculiares, é uma situação de tal modo individual, que nesta se deve e pode decidir a partir dele próprio, mas a China no século XXI, entre as teorias e sua práxis, vem voltando aos tempos áureos de sua história relativamente recente. Cabe lembrar que, mesmo com o declínio Ming, a China já na gestão manchu, essas ideias mantiveram o poder imperial da China por séculos. Desde o fim da dinastia Han, dezesseis séculos se passaram, durante os quais o Império chinês foi uma grande potência e o país mais rico do mundo. Em 1820, seu PIB representava cerca de 30% do PIB mundial.
Como Hegel bem salientou, os homens e seus governos, ao tenderem a ignorar os fatos históricos, podem cometer os mesmos erros do passado. No caso da China atual, prevemos um amplo desenvolvimento, por isso o título do texto, o século chinês, mas não temos condições claras de saber até onde irão nesse processo. O que fica evidente aqui é que, nesse e talvez no próximo século, a China poderá ser a nova potência global do mundo.
Para termos ideia, o crescimento médio do PIB foi de 9,7% ao ano, em comparação com a média global de 2,7%. A expectativa de vida aumentou de 67,8 anos em 1981 para 76,7 em 2018. Uma classe média de cerca de 400 milhões de consumidores havia sido criada, a maior do mundo. A China precisava continuar avançando com as reformas, caso contrário, regrediria. O atual líder da nação, Xi Jinping, anunciou que tudo o que precisasse de reforma seria reformado, mas não o que não deveria ser.
Antes de mais nada, existe alguma doutrina chinesa dentro desse processo?. Algum mandamento?. Esse é uma dos pontos de debate no Brasil. Seria o projeto chinês comunista?. Capitalista ou fascista como alguns dizem?. Bom, não irei responder nada disso. Mas caminharemos dentro de uma análise fria e sem moralismos.
A “doutrina” que encontramos na China hoje se iniciou factualmente em orientação aos períodos da Revolução Chinesa de 1949, da Construção Nacional das décadas de 50 e 60 e da era Deng ou das reformas. Segundo as experiências práticas e históricas desses três períodos, eles foram consolidados dentro do âmbito teórico marxista, mas, longe de dogmatismos, o marxismo enraizou-se firmemente no que há de melhor da cultura chinesa.
Foi Mao Zedong, o fundador do marxismo chinês, que, por meio da luta contra as diferentes tendências equivocadas no âmbito do Partido Comunista Chinês, particularmente do dogmatismo “esquerdista”, realizou uma síntese das reflexões sobre os problemas encontrados no caminho da Revolução Chinesa, sendo o primeiro a conceber uma doutrina sobre o marxismo chinês. Em outubro de 1938, no relatório "Sobre a Nova Etapa", apresentado à Sexta Plenária do 6º Congresso do PCC, Mao afirmou:
“Falar de marxismo desvinculado das características da China não passa de um debate abstrato, vazio.”
Porém, foi no tempo das Reformas da década de 70 que vimos o renascer do próprio “Marxismo”, enquanto uma revisão dos seus postulados ocorria dentro da China. Foi durante a Terceira Plenária do 11º Congresso do PCC, em que o então líder Deng Xiaoping resumiu os ensinamentos e experiências da Revolução Chinesa e Construção Nacional por meio de dois aspectos: um positivo e outro negativo, enfatizando a prioridade de se aliar os princípios básicos do Marxismo e a Construção Nacional, buscando um caminho próprio à China, desenvolvimento do “Socialismo com Características Chinesas (SCC).”
Esse pensamento é a mola mestra do que vemos na visão de Xi Jinping sobre a nova era do SCC, além de ser uma parte importante e a mais nova realização do Sistema Teórico do SCC. A teoria de Deng Xiaoping, em sua sistemática, pode ser resumida da seguinte forma: “o que é socialismo e como construí-lo”, discorrendo sobre os meios para sua construção; as etapas de seu desenvolvimento; as tarefas fundamentais; as forças motrizes.
Para Deng, é preciso levar em conta as condições externas; as garantias políticas; os passos estratégicos; as lideranças partidárias e forças a serem aproveitadas, bem como os problemas básicos da Unificação da Pátria. Em outras palavras, Deng não está preso a nenhum discurso dogmático ou a doutrinas literalistas com exegeses do mundo por textos sacros de um autor X ou Y; sua preocupação é simples: desenvolver a China a todo custo. Entretanto, o desenvolvimento chinês atual pode ser analisado à luz de grandes e bons economistas desenvolvimentistas como Rosenstein-Rodan, que propunha dois tipos de desenvolvimento para nações subdesenvolvidas como a China dos anos 50.
O primeiro era o modelo russo-soviético, que dizia respeito ao crescimento lento, sem capital externo (capitais fictícios como financiamentos diretos, empréstimos em bancos internacionais), buscando criar capital internamente e, para tal, impactar o padrão de vida e de consumo da população. A desvantagem se refere à criação de uma unidade independente na economia mundial, diminuindo as vantagens que poderiam decorrer da divisão internacional do trabalho, pois, quando essa opera adequadamente, resulta numa maior produção global. Por fim, poder-se-ia incorrer em geração de capacidade ociosa mundial, especialmente de indústrias pesadas, implicando o que seria um desnecessário desperdício de recursos.
Já a segunda via de industrialização, qual seja, ser promovida por meio da inserção de regiões mais atrasadas na economia mundial, preservaria as vantagens da divisão internacional do trabalho e estaria baseada em um grande aporte de capital externo, leia-se mão de obra mais barata, visando justamente atrair as grandes fábricas multinacionais.
Para Rodan, a primeira vantagem dessa segunda alternativa seria permitir um progresso mais rápido, sem precisar sacrificar os níveis de consumo interno para captar poupança, uma vez que se permite recorrer ao capital externo. A segunda vantagem implica que, ao respeitar a divisão internacional do trabalho, essas regiões poderiam pautar a sua industrialização somente em indústrias leves, com técnicas intensivas em trabalho, portanto, com maior capacidade de absorção de mão de obra. Foi justamente esse o passo da China de Deng.
A primeira ação adotada pela China foi a criação de firmas líderes nas cadeias de valor globais, que incluem: administração dos investimentos estrangeiros diretos (IED) e estabelecimento de diferentes mecanismos para transferência tecnológica entre firmas e recursos para pesquisa pura e aplicada e estabelecimento de padrões tecnológicos nacionais. A estratégia era a seguinte:
Dar dinamismo a essa liberalização econômica relativamente rápida da China, que desde 1978 ofuscou em larga medida suas políticas e objetivos industriais, que são explicitamente desenhados para restringir e administrar o investimento estrangeiro;
Proteger e estimular as indústrias domésticas chinesas por meio da aquisição de alta tecnologia estrangeira.
Foi no setor de serviços que o modelo atual chinês realmente começou. Até o final dos anos 1980, esse processo era caracterizado pela mera importação em larga escala dos produtos finais, incluindo televisores e refrigeradores, computadores e centrais telefônicas, evidentemente com pouca e nenhuma transferência ou absorção de tecnologias estrangeiras.
Durante os anos 1990, barreiras tarifárias e não tarifárias passaram a restringir a importação de bens finais, ao mesmo tempo que as políticas de favorecimento à entrada de capital estrangeiro foram criadas em conjunto com as zonas econômicas especiais, as famosas (ZEEs). É justamente nessa fase que as regulações muito estritas para a entrada de investimentos estrangeiros foram adotadas na tentativa de garantir um impulsionamento de firmas domésticas.
A última fase desse processo foi após o ano 2000, em que o Estado chinês, munido das técnicas necessárias, começou a criar regulações ao “IED”, além de manter as barreiras seletivas tarifárias e administrativas que continuaram ativas.
A exigência para formação de joint-ventures [2] foi eliminada na virada do século na maioria dos setores, e, a partir de então, a fatia dos investimentos totalmente estrangeiros, sem formação de joint-venture, cresceu sensivelmente, passando de 24% dos investimentos estrangeiros diretos totais em 1991 para 47% em 2000, 71% em 2005 e 76% em 2011. Continua sendo comum, no entanto, a exigência de que a firma 100% estrangeira estabeleça um centro de treinamento, pesquisa e desenvolvimento ou laboratório em uma das maiores universidades chinesas ou institutos de pesquisa de Pequim ou Xangai. O governo chinês permite investimentos 100% estrangeiros em indústrias que não forem catalogadas como “proibidas” ou “restringidas”, seguindo o Catálogo para Guiar Investimentos Estrangeiros, uma lista publicada periodicamente (de três a cinco anos) e que determina quais indústrias têm IED “estimulado”, “restringido” ou “proibido”. Os segmentos que não estão listados são geralmente apenas “permitidos”.
O primeiro setor atingido com essa estratégia foi o de telecomunicações. Foi a Shanghai Bell Telephone Equipment Manufacturing Corporation a primeira “jointventure” a formar-se na China no ramo de telecomunicações, em 1983. Na época da sua instalação, engenheiros chineses não tinham experiência relevante em produção, design ou desenvolvimento de centrais digitais de telecomunicações. A joint-venture foi o resultado de 30 meses de negociações que envolveram os governos chinês e o belga, o antigo Ministério de Correio e Telecomunicações da China, a estatal Corporação Industrial de Correio e Telecomunicações, vinculada ao Ministério de Correio e Telecomunicações, e a belga Bell Telephone Manufacturing Company (BTM), afiliada da International Telephone and Telegram Corporation (ITT).
O governo chinês exigiu a transferência de tecnologias necessárias para a produção local dos principais componentes do “Sistema-12” utilizado na época, incluindo um chip LSI os “circuito integrado de larga escala” customizado, unidades computadorizadas de teste e tecnologia de produção de circuitos impressos. Além disso, a Shanghai Bell depois de estabelecida a joint-venture deu aos chineses não apenas a possibilidade de manufaturar e operar equipamentos que utilizavam tecnologias de ponta na época, mas também de receber o treinamento necessário. No processo de adaptar o Sistema-12, a Shanghai Bell teve, portanto, de investir na formação e na qualificação técnica de profissionais pessoal e cooperar com universidades locais em P&D [3] . Segundo dados, naquela época anualmente, entre 3% e 4% dos engenheiros da Shanghai Bell deixavam a empresa em busca de outros postos de trabalho, seja estabelecendo negócios próprios, seja preenchendo vagas nas outras joint-ventures que se formaram nos anos seguintes, em institutos de pesquisa ou, quando as empresas chinesas emergentes começaram a remunerar bem, para trabalhar para os competidores chineses.
O chamado Coordinating Committee for Multilateral Export Control (Cocom), liderado pelos Estados Unidos durante a Guerra Fria, que impunha restrições ao fluxo de bens estratégicos e know-how para países comunistas estava fora do jogo. Agora as negociações do governo belga com os Estados Unidos permitiram a transferência de tecnologia para a então China de Deng, um erro fatal, que levaria anos depois ao gigante crescimento da China com níveis de competitividade nunca vistos antes.
Referência bibliográfica:
BAOFENG, Xu; QIAORONG, Yan. Enciclopédia da cultura chinesa. Ed. Contraponto Editora. 2023. p.784.
CARDOSO, Fernanda Graziella. Nove Clássicos do desenvolvimento econômico. Ed. Paco Editorial. 2018. p.156.
CINTRA, Marcos Antonio Macedo; FILHO, Edilson Benedito da Silva; PINTO, Eduardo Costa. A China em transformação: Dimensões econômicas e geopolíticas do desenvolvimento. IPEA. Rio de Janeiro. 2015. p.602.
DEZCALLAR, Rafael. El ascenso de China: Una mirada a la otra gran potencia. Ed. Deusto. 2025. p.352.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A razão na história. Ed. Edições 70. 2013. p.240.
MAHBUBANI, Kishoe. A China venceu? - Ed. Intrínseca. 2021. p.368.
MARTI, Michael E. A China de Deng Xiaoping. Ed. Nova Fronteira. 2021. p.368.
SPENCE, Jonathan D. Em busca da China moderna. Ed. Companhia das Letras. 1996. p.960.
Notas de rodapé:
Formado em História pela UCSAL - Universidade católica de Salvador.
Tem como objetivo, por meio de uma parceria estratégica entre duas ou mais empresas, através de um projeto em comum, onde compartilham recursos, conhecimentos, riscos, custos e por fim os lucros.
Pesquisa e desenvolvimento.
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