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Uma elite rastaquera que desconhece o que quer

Marcos Jr.1


No dicionário Michaelis [2] da língua portuguesa, o termo "rastaquera" pode significar "que ou quem ostenta riqueza por dispendiosas exibições". No Priberam [2] , pode significar "que tem pouca educação ou delicadeza". No Dicio [4], pode significar "ignorante; que expressa rudeza". Seja qual acepção for a escolhida, nenhuma delas, convenhamos, possui significado positivo.


Acredito que todos vão concordar que uma população no sentido de massa "rastaquera" não é algo que gostaríamos que tivesse em nosso país, ao menos pelos brasileiros que desejam o bem da nação. Mas isso pode ser revertido, em longo a longuíssimo prazo, contanto que a população tome conhecimento de seu real estado e as elites com mais recursos e em tese com mais conhecimento técnico e humanístico - colaborem com essa mudança.


No entanto, a situação torna-se bem mais difícil quando a própria elite - política, econômica, intelectual, e... - é "rastaquera", no sentido de, a despeito de estar montada em vultuosos recursos financeiros, revela-se inculta, ignorante e incapaz de fazer uma leitura razoável até mesmo de seus próprios interesses, quanto mais os do país e do cenário global.


Popularizado pelo historiador e escritor Marco Antônio Villa (em que pese minhas discordâncias ideológicas), o termo "elite rastaquera" caracteriza, de maneira justa, um grupo de pessoas que, tão somente possuem a capacidade de fazer muito dinheiro, e nada mais. Não esperem nada semelhante ao conceito de noblesse oblige [5] , em que os antigos nobres, ao menos na expectativa, tinham responsabilidades a honrar com seus pares e seu país. O sonho dessas pessoas é juntar o máximo de dinheiro possível (e aqui nem entro no mérito dos meios para isso, muitos deles nada agregadores à sociedade [6]) para, em algum momento, pode viver sua vida, de maneira pendular ou mesmo permanente, no exterior - ultimamente a Flórida tem sido a preferência de muitos, mas nada impede que escolham outros destinos menos badalados.


Um exemplo recente de pensamento típico dessa "elite rastaquera" está registrado em uma entrevista do jornal Folha de S. Paulo [7], no dia 15 de junho , ao empresário Ricardo Faria, conhecido como "rei do Ovo", pelo fato de ser controlador da multinacional Global Eggs, holding [8] que possui, entre outras granjas ao redor do mundo, a brasileira Granja Faria. Nesta entrevista, Faria, que segundo a Folha  - foi doador em 2022 para as campanhas de Jair Bolsonaro (PL) e Tarcísio de Freitas (REP) , descreveu as dificuldades seculares de se empreender no Brasil (não que suas queixas sejam de todo inválidas, cabe frisar), bem como outros tópicos sobre política e economia que influenciam diretamente sua atividade empresarial.


Contudo, um ponto em particular dessa entrevista chamou a atenção e acendeu a polêmica em torno do Bolsa Família, o principal programa de transferência do governo federal, instituído em 2003 ainda no primeiro governo Lula, fruto da consolidação dos programas Bolsa Escola, Cartão Alimentação e Auxílio Gás e que atravessou duas décadas de diferentes governos, de diferentes matizes ideológicos.


     Perguntado sobre a "dificuldade para contratar", Faria respondeu o seguinte:


"Está um desastre no Brasil. Por duas razões. Primeiro, porque as pessoas estão viciadas no Bolsa Família. Não temos nem a chance de trazer essas pessoas para treinar e conseguir dar uma vida melhor, porque elas estão presas no programa. [...]"


     Para começo de conversa, tal afirmação de Faria, a de que o Bolsa Família tem sido um obstáculo à contratação de profissionais devido ao seu valor mínimo de 600 reais, tem se tornado cada vez mais frequente em certos segmentos empresariais, bem como nas redes sociais.


     Em primeiro lugar, curiosamente, o governo que aumentou o benefício para esse patamar não foi o atual, de Lula, mas sim o anterior, de Bolsonaro - outro ponto igualmente curioso é que este era crítico ferrenho de programas de transferência de renda [9] enquanto deputado federal. Fato é que Faria financiou a campanha de um candidato que ampliou o valor do Bolsa Família que ele tanto se queixa, independente se este fez isso por convicção ou mero cálculo eleitoral para ter sobrevida na disputa eleitoral de 2022.


     O segundo ponto é que a afirmação de Faria não encontra respaldo nos dados e nos fatos. Conforme matéria publicada pela Folha [10], dois dias após a entrevista de Faria: a taxa de desocupação é menor que há dez anos (quando o valor por pessoa do auxílio era de 100 reais). Além disso análises da renda domiciliar per capita mostram que, entre 2019 e 2023, o trabalho com carteira assinada ganhou maior terreno justamente entre os mais pobres, e a renda subiu mais neste grupo. Ou seja, nem mesmo o aumento do Bolsa Família para 600 reais - ocorrido nesse interim - foi capaz de brecar ou reverter essa tendência.


     O terceiro ponto, que deveria soar um tanto óbvio, é que se um emprego oferecido não é atrativo face a um auxílio cujo valor médio é próximo a 670 reais [11] - inferior a meio salário-mínimo - o problema, talvez, não esteja no auxílio, mas sim na qualidade do emprego oferecido, seja em relação ao salário, seja em relação às condições de trabalho.


     E posso exemplificar isso por uma das vagas oferecidas pela própria Granja Faria [12]: a de operador de produção, responsável pelas atividades de "chão de fábrica" da empresa, para trabalho em tempo integral e com disponibilidade para morar na granja, sujeito a todas as implicações inclusive sanitárias (haja vista os riscos de contaminação com o vírus da gripe aviária). A remuneração? Pouco mais de 1.600 reais/mês, inferior à média do mercado e pouco superior ao salário mínimo [13]. O problema seria realmente o Bolsa Família? Faria precisaria rever seus conceitos...


Detalhes da vaga de Operador de Produção oferecida pela Granja Faria S.A., incluindo atividades, requisitos, diferenciais, informações adicionais, benefícios e remuneração mensal de R$1.625,00
Detalhes da vaga de Operador de Produção oferecida pela Granja Faria S.A - Foto: Granja Faria S.A

     Por último, mas não menos importante, cabe comentar outro ponto da entrevista de Faria: ele cita a infraestrutura como um dos "problemas reais" do país, o que concordo aliás, é outro problema secular nosso que precisamos enfrentar, ao mesmo tempo que financia candidatos cujas políticas levaram à redução de investimentos no setor [14] a patamares mínimos em quase três quartos de século.


Em suma, Faria é mais um exemplo de uma elite que não sabe o que quer para o país.


Notas de Rodapé:


  1. Engenheiro de Produção


  2. Disponível em:

    https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra 


  3. Disponível em:

    https://dicionario.priberam.org/rastaquera 


  4. Disponível em:

    https://www.dicio.com.br/rastaquera/ 


  5. Disponível em:

    https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/noblesse-oblige/13583 


  6. Disponível em:

    https://www.brasilgrande.org/post/a-financeirizacao-parte-ii-do-day-trade-ao-tigre-da-fortuna 


  7. Disponível em:

    https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/06/e-um-desastre-contratar-no-brasil- 


  8. Uma holding administra e possui a maioria das ações ou cotas das empresas componentes de um determinado grupo empresarial. Essa forma de sociedade é muito utilizada por médias e grandes empresas visando melhorar a estrutura de capital, ou também é usada como parte de uma parceria com outras empresas ou mercado de trabalho, em:

    www.sebrae.com.br


  9. Disponível em:

    https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62158187 


  10. Disponível em:

    https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/06/contrariando-rei-do-ovo-emprego-formal-avancou-mais-entre-pobres.shtml 


  11. Disponível em:

    https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2025/05/repasses-do-bolsa-familia-em-maio-comecam-nesta-segunda-19-e-chegam-a-20-46-milhoes-de-familias 


  12. Disponível em:

    https://granjafaria.enlizt.me/vagas/operador_de_producao-100723-2 


  13. Disponível em:

    https://www.salario.com.br/profissao/trabalhador-da-avicultura-de-postura-cbo-623310/#google_vignette 


  14. Disponível em:

    https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/investimento-em-infraestrutura-esta-no-menor-nivel-desde-1947-e-deve-cair-mais/ 


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